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Cuca Roseta e Orquestra Filarmonia das Beiras celebraram a música e o azulejo em concerto único

Escrito por em 09/05/2024

No passado domingo, 5 de maio, Cuca Roseta subiu ao palco improvisado na Igreja Matriz de Válega, considerada uma das mais belas do país graças aos seus painéis azulejares, para um concerto com a Orquestra Filarmonia das Beiras.
Foi com lotação esgotada que se deu início ao momento musical, integrado na extensa e diversa programação do Maio do Azulejo, evento da Câmara Municipal de Ovar que, ao longo deste mês, celebra o nosso património.

“Uau, ela está mesmo à minha frente” – é impossível, pelo menos para mim, contrariar o sentimento quase infantil de ver uma figura tão afamada e bem-conhecida pelo povo português como Cuca Roseta a poucos metros de distância. Foi essa a sensação que despoletou logo que ela entrou em palco e parecia-me irreal vê-la ali e não através de um ecrã, quanto mais saber que ia ter oportunidade de a entrevistar.

Mas todo este talento e toda esta fama não são sem fundamento: a partir do momento que ouvimos a sua melíflua voz, percebemos como é inacreditável o dramatismo que ela acarreta, como o timbre é tão puro e potente, e de uma projeção inconcebivelmente fabulosa – tudo isto adiciona-se a uma performance que é sempre extremamente teatral e cativante, e torna-se impossível que a nossa atenção não seja captada por completo, por esta voz permeante e cheia de vida. De facto, esta capacidade incomparável por parte da cantora era inegável, e ainda para mais adornada com uma ligação já duradoura com a orquestra com que se apresentou – esta parceria, como confirmado em entrevista após o concerto, formou-se já em ocasiões anteriores, o que se nota pela ligação e coesão visíveis neste espetáculo.

A primeira qualidade que distingui na orquestra foi a maneira impecável como os instrumentos tipicamente fadistas não eram silenciados por toda a massa orquestral, mas de facto incluídos numa simbiose, cuja sonoridade era não só única, como fantástica.
No entanto, é a orquestra que enriquece todas as canções em que entra de uma maneira inesquecível, com sonoridades tão interessantes e tocantes que transformam a música nalgo ainda mais grandioso. O maestro, Jan Wierzba, dirige-a num tom pura e simplesmente majéstico, o que prova uma incrível musicalidade, para além de versatilidade, por um maestro que não foi exposto a este tipo de música desde cedo, mas que lhe confere um caráter de louvar.

À medida que o concerto progride, confirmamos a tremendamente impressionante musicalidade da cantora, com uma expressividade tão vasta e comovente, rodeada por uma orquestra tão imersiva e que lhe acrescenta um caráter quase cinemático. Aliada a uma presença inconfundível, e com um sentimento e envolvência tão vincados, é impossível não ser tocado por todas e cada nota da fadista.

A impressão com que ficamos é que quando Cuca canta, entra num mundo próprio, um mundo tão dela, transcende para um universo tão intenso, feérico, um mundo celestial e vivo em que apenas ela possui a chave para abrir o seu portal. E quão intensa é a experiência quando a cantora nos deixa entrar nesse seu mundo. É realmente visível o que Cuca pretende transmitir ao afirmar que o fado era o seu “destino”, como se todo o género fosse feito especialmente para ela.

A orquestra adiciona um timbre tão terno e envolvente à música, e a percussão era deveras relevante pela maneira como adicionava um toque fresco e inovador – aliás, outro aspeto interessante no campo do ritmo, e que eu achei curiosíssimo, foi a desconstrução de que um certo caráter, um certo ethos, exige um certo andamento. Foi particularmente interessante como essa noção foi quebrada, mantendo sempre um ritmo fluido mesmo nas partes mais melancólicas. Como nos é dito em entrevista com os artistas, “tudo se consegue com um bom arranjador”, e disso não restam dúvidas ao ouvir uma orquestração tão maravilhosamente conseguida – e, para além disso, que complementa tão bem a cantora, que confere que sempre adorou cantar com orquestra, para além de se lembrar perfeitamente de ouvir peças orquestrais ou operáticas eruditas quando criança que a viriam a inspirar no futuro.

É na guitarrada (uma das minhas partes preferidas do concerto) que vemos uma enorme proeficiência nos guitarristas e baixista que acompanham Cuca, com um domínio claro dos seus instrumentos, mas impressionantemente versados na própria linguagem harmónica a que o género se submete. Com um delicioso sabor a improviso, uma representação tão aguda daquilo que é o fado na sua essência trouxe-nos uma peça tão cheia de fervor, tão viciante, que era impossível desejar que acabasse – esta peça foi definitivamente inesquecível, e posso atestar que nunca vou olhar para o fado da mesma maneira: para além de ter ficado curiosíssima por aprender mais sobre a paleta harmónica deste estilo.

Ao voltar da cantora ao palco, apercebemo-nos de como a orquestra complementa e acentua na perfeição a enorme teatralidade na sua voz, transpõe na perfeição o mar de emoção no seu timbre. Particularmente nos temas mais gaiatos, é magnífica a maneira como a orquestra manifesta um caráter tão triunfal e jovial, e como a fadista consegue obter um som tão potente, tanto magnificamente feérico como encantadoramente melancólico, ou até mesmo às portas da nostalgia, e como era incrível ouvi-la a pintar imagens tão reminiscentes e em nada esbatidas, definitivamente, e acho improvável discordar de que a voz da cantora é de fazer o chão tremer – penetrante, é essa a palavra que procurei desde o início do concerto para a descrever, sempre munida do meu fiel caderninho mas a princípio sem palavras para descrever a força, o poder, o sol na voz de Cuca.

Uma voz maravilhosamente fluída, e, correndo o risco de soar a cliché, que voava como um pássaro – livremente, e para onde quisesse.

Em conclusão, uma experiência extremamente pungente e sem dúvida ímpar, levada a cabo por uma fadista que sabe exatamente como tocar cada cordelinho do nosso coração – sem esquecer uma orquestra maravilhosa e que unificava e engrandecia tudo em que tocava, e guitarristas, baixista e baterista de um virtuosismo e musicalidade incríveis, que apenas com o seu incrível domínio musical já valiam pelo concerto inteiro.

Um concerto que foi uma aventura, e um que foi cheio de vida.
Definitivamente a repetir, mas esquecer? Nunca.

Confira alguns momentos do concerto, pela lente de António Dias:

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Fotos: António Dias
Texto: Mariana Rosas

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