Mi-Fá-Dó-Sol | 02 Jan 2025
Carlos Reis e Dino Marques 02/01/2025
Emissão: 02 de Janeiro 2025
Descrição: Programa inteiramente dedicado ao Fado. Realizado por intérpretes do género musical, Mi-Fá-Dó-Sol foca-se na divulgação de artistas e eventos, sem deixar de lado a história e as curiosidades de tão importante património português!
Segundo argumentam os partidários da tese árabe, após a restauração do cristianismo, o fado destacou-se entre as populações muçulmanas fixadas na zona próxima da Mouraria. A explicação mais habitual para a génese do fado centra-se nos cânticos dos mouros, mais concretamente no que concerne ao fado de Lisboa, já que este povo permaneceu nos arredores da capital, mesmo depois de terminada a reconquista cristã. Verifica-se, por exemplo, uma certa correspondência entre os cânticos tristes e melancólicos dos mouros e o fado lisboeta, para além da conexão espacial com a Mouraria, local afamado por nele ocorrerem as práticas fadistas de Lisboa.
No entanto, esta hipótese é de difícil sustentação, uma vez que, se a origem do fado radicasse na cultura árabe, então a presença geográfica deste tipo de interpretação musical deveria ser ainda mais evidente noutras paragens, como o Algarve, o “último reduto dos Árabes em Portugal”. Por outro lado, há que sublinhar que os muçulmanos abandonaram a Península Ibérica nos finais do século XV e os primeiros registos de fado surgiram apenas no início do século XIX.
A origem marítima do fado é defendida, tendo em consideração que os marinheiros o cantavam na proa dos barcos. É, possivelmente, por essa razão que o mar é uma das temáticas centrais deste género musical. Quando falamos de Portugal, é necessário mencionar o papel fulcral desempenhado pelo contexto marítimo. O império colonial português começou a estabelecer-se no início do século XV. A partir de então, o cenário marítimo originou numerosas metáforas e é frequentemente representado como uma espécie de infinito imenso, permitindo interrogar o poder do desconhecido e da natureza.
O fado tem uma origem marítima, origem que se lhe vislumbra no seu ritmo onduloso como os movimentos cadenciados da vaga, balanceante como o jogar de bombordo a estibordo nos navios sobre a toalha líquida florida de fosforescências fugitivas como o vaivém das ondas batendo no costado, ofegante como o arfar do Grande Azul desfazendo a sua túnica franjada de rendas espumosas, triste como as lamentações fluctívagas do Atlântico que se convulsa glauco com babas de prata como a indefinível nostalgia da pátria ausente.
Desta forma, o oceano constitui um filão imagístico muito importante no que diz respeito à essência do fado. Tudo o que se encontra com ele se relacionado (veleiros, tempestades, ondas, sereias, etc.), converteu-se num código poético de expressão do contato sentimental dos portugueses com o mar. A explicação portuguesa da origem do fado parece razoável, porque algumas letras de fados provam que existe uma forte ligação com o signo do mar, havendo, por exemplo, algumas canções do fado que explicitamente tematizam esta teoria oceânica.
É estabelecida uma correlação entre a melancolia portuguesa e as conquistas marítimas dos séculos XV-XVI. O sofrimento causado pelas viagens marítimas dos portugueses conduziu à expressão dessa dor artisticamente plasmada no fado. Quem ficava em terra, em Portugal, e via partir os seus entes queridos que se aventuravam no mar desconhecido sofria muito com essa separação tão incerta, pelo que se criou um ambiente repleto de melancolia e esperança ligado a uma certa forma de dor coletiva da partida, da separação e medo de nunca mais voltar a ver as pessoas amadas.
Se considerarmos o plano do conteúdo dos poemas que acompanham as canções do fado, podemos notar que, se, por um lado, o sofrimento e a dor são um tema dominante das letras, por outro, é possível conjeturar sobre a sua fonte possível. Sendo também uma narrativa polarizada em torno da experiência erótico-amorosa, o fado parece expressar um sentimento muito semelhante ao de uma canção medieval, em que a ausência do ser amado gerava a coita de amor.
Embora não haja ligação direta entre as caravelas do século XVI e o nascimento do fado, algumas canções descrevem cenas relacionadas com o mar que, para além do sentimento manifestado pelos marinheiros, refletiam ainda a dor que o seu distanciamento provocava tanto neles como em quem ficava em terra. Tendo em conta estas reflexões, podemos afirmar que o oceano, como signo e como símbolo, sempre desempenhou, portanto, um papel crucial na literatura portuguesa.
As expressões artísticas relativas ao mar descrevem bravura e coragem, saudade e sofrimento, o poder dos homens face à cólera dos oceanos, os sonhos que se tornam realidade ou que, pelo contrário, se transformam em pesadelos e a nostalgia da grandiosidade do passado. Tudo isto são aspetos marcantes da cultura portuguesa que ainda hoje perduram na consciência coletiva. Por isso, o oceano não é apenas um elemento referencial da natureza, mas reveste-se também de um denso significado metafórico. É um tema que não pode ser ignorado na interpretação das canções do fado, considerando que Portugal é um país com uma forte raiz oceânica.
Nos primeiros anos do século XX, o fado encontrou o seu lugar na sociedade lisboeta. Das tabernas populares às zonas urbanas e rurais, o fado podia ser ouvido por todos os estratos sociais. Um dos fatores que, em especial, muito contribuíram para a difusão do fado junto das camadas populares de todo o país foi o surgimento da indústria discográfica. Ao mesmo tempo, assiste-se também a profundas mudanças sociais, políticas e económicas, precipitadas pelo declínio da aristocracia e pelo fim da monarquia.
Além da participação de pessoas de todas as esferas da vida social, há que ter também em atenção os locais onde se produzia o fado, pois ele passou a ser praticado em coletividades de recreio e teatros, embora se tornasse igualmente um meio de diversão em saídas para o campo ou para a praia, em que os vários elementos da vida quotidiana eram espontaneamente integrados nas canções do fado.
A improvisação trazia consigo a tipificação das formas poéticas que então se vulgarizam e ocupam praticamente meio século de produção fadista. São elas a décima, cuja quadra inicial, designada mote, era dada ao “adversário” para sobre ela este improvisar e construir as quatro estrofes de dez versos; e a
quadra simples, que viria a permanecer mais tempo em uso na desgarrada, em canto alternado de dois ou mais cantadores em disputa.”
Quando a indústria discográfica se instalou em Portugal produziram-se centenas de registos sonoros de fado, o que também contribuiu para a sua maior divulgação. Com a implantação da República, em 1910, aparecem as primeiras publicações periódicas sobre o fado, passando este a ser promovido através dos jornais e, por essa via, espalhando-se por todo o país. Depois, com o passar do tempo e o desenvolvimento dessas mesmas publicações, as letras do fado tornaram-se cada vez mais literárias.
Assim, “a tradicional forma estrófica é substituída por uma estrutura de alternância de um refrão fixo com coplas sucessivas. Estes novos fados (…) são desde cedo designados por «fados-canção»”. Na década de 30, o fado voltará a ser afetado por mudanças no seu repertório, passando a assentar numa forma fixa de poesia.
Associada à amplificação da produção discográfica, foi nos anos de 1930-1950 que a rádio se difundiu mais, tendo contribuído, de forma muito expressiva, para a profissionalização do fado. Em particular, durante o mesmo período, a fadista Amália Rodrigues foi convidada para cantar o fado no Brasil e aí foi alvo de uma calorosa receção. O fado passou, então, a ser reconhecido internacionalmente.
Após a II Guerra Mundial, Salazar escolhe adotar três “f” – fado, futebol e Fátima – em momentos isolados na política internacional. O ditador português visa “adotar uma estratégia de representação ideológica mais próxima do figurino de um autoritarismo conservador com uma forte mensagem nacionalista e populista” . Deste modo, apropriou-se do fado como estratégia populista do regime, “da canção ‘ligeira’ à imprensa popular, e da Rádio e Televisão à Revista e ao Cinema”.
“a colagem ao fado (…) parece assim emergir agora para as autoridades salazaristas, como um possível instrumento de consolidação do seu Poder, sobretudo pelo encorajamento às temáticas da exaltação patriótica, da evocação ritual da tradição e do apelo a uma atitude de passividade perante um destino individual predeterminado e imutável”.
O governo da ditadura apropria-se do fado como estratégia de consolidação ideológica, perspetivando-o como uma canção de sentido patriótico-nacionalista:
O fado acaba por se subjugar ao regime, para poder sobreviver, e é então que se desenvolve e consolida o mito do fado como símbolo da identidade nacional lusa. De manifestação de ‘margem’, o fado torna-se bandeira de um regime, de uma nação. (…)
A invenção do fado como “tradição nacional” foi produto de um longo processo. O fado “típico” constitui-se como um estilo evidentemente artificial, mas, para ter eficácia simbólica, precisou de ser encarado como tradição.
O fado passa, assim, a representar simbolicamente a essência do povo português. Também Amália Rodrigues é considerada a representante do fado, porque este aproveitamento político do fado coincidiu com o período áureo da popularidade de Amália, pois a sua projeção internacional estava no auge e já era conhecida mundialmente. Nos anos oitenta e noventa havia já muitos outros fadistas. No século XX, o fado apareceu em muitos domínios, sendo que a sua propagação se tornou ainda mais ampla, enquanto produto de um processo construtivo deste género musical como símbolo da identidade nacional portuguesa.
Esta canção nacional tem vindo a ganhar uma vida nova com o cruzamento de estilos e reinterpretações feitas por novos fadistas, que misturam a tradição com a atualidade. A nova geração do fado é composta por homens e mulheres que sentem a tradição e a levam mais além, fundindo-a com outros géneros da cidade de Lisboa, abraçando a sua multiculturalidade. Alguns dos nomes de referência são os de Ana Moura, Cuca Roseta, Carminho, Camané, Gisela João, Cristina Branco, Mariza, Mafalda Arnauth, mas muitos mais vão surgindo todos os anos, demonstrando que a música triste que ecoava pelas ruas escuras de Lisboa no século XIX ainda está bem viva e presente na voz de quem quiser cantar o fado: com alma e emoção.
No decurso da sua evolução histórica, os temas do fado cristalizaram-se num núcleo relativamente restrito de possibilidades. Com efeito, a tradição codificou um repertório de temas e motivos que, desde sempre e até hoje, continuam a associar-se à trova nacional.
Tudo isto se prende com a tradição. Quando falamos em “tradição” não estamos apenas a referir a carga de elementos que o fado veio transportando consigo ao longo das décadas, desde os tipos de forma musical e instrumental em que se impôs até às formas estróficas, como a quadra, a quintilha, a sextilha, a glosa de um mote em décimas, o emprego do refrão e coisas assim, bem como aos tópicos que, mais frequentemente, as suas letras percorreram e que, recordemos, se prendem com o amor, o ciúme, o sentido do destino, o abandono, a saudade, a noite, o Tejo, a cidade de Lisboa, etc., etc., aspetos
que abundantemente se podem documentar, e a que se acrescenta, numa faixa mais específica, o fado mais alegre e mais marialva, ligado ao Ribatejo, ao toureiro, ao campino, ao forcado, ao cavalo e ao toiro e que Amália também cantou.
Considerada como sentimento definidor do caráter nacional, a saudade não podia deixar de constituir um dos temas maiores do fado. Na verdade, quer se encontre nele ligada à expressão amorosa, quer se encontre associada a uma idade ou um lugar perdido, o fado concede lugar de primazia a esse misto de
melancolia e nostalgia que impregna as suas palavras e música.
(…) é inevitável falar de saudade. “Com a saudade não recuperamos apenas o passado como paraíso; inventamo-lo”, cuja deriva filosófica e cuja meditação antropológica sobre o destino português o tem levado a atribuir à saudade um papel especial, uma espécie de carne do nosso ser, fazendo-a participar também do sonho enquanto recusa da realidade típica do nosso modo de estar no mundo.
A saudade é pensada por ele como uma categoria do tempo humano: “a saudade, a nostalgia ou a melancolia são modalidades, modulações da nossa relação de ser de memória e de sensibilidade ao Tempo”, acrescentando: “A saudade participa de uma e de outra, de um modo tão paradoxal e estranho”, que se tornou “um enigma e um labirinto, à imagem da relação estranha e paradoxal dos Portugueses com o seu tempo”.
Ao relacionar a saudade com a nostalgia e sobretudo com a melancolia, somos reconduzidos à grande matriz saturniana e criadora da cultura europeia. Mas, quanto às formas por que ela se exprime, intui que o canto e a palavra poética foram o seu primeiro veículo, isto é, antes de ser pensada, a saudade foi cantada. (…) No fado de Lisboa, essa melancolia do sentimento da saudade é concretamente assumida a cada passo. Considerada por alguns uma palavra especificamente portuguesa, a saudade tem, ao logo dos séculos, sido uma linha de força na literatura e na arte portuguesas. A palavra saudade percorre quase todas as letras das canções do fado, pelo que podemos intuir a sua presença polarizadora em muitos fados. “a saudade comporta a ambivalência de que nasce. (…) É um caleidoscópio que sintetiza, numa só vivência, toda a gama da existência”. Nas letras de fados, pode verificar-se a capacidade que este tema-chave revela de se unir a outros motivos que com ele surgem frequentemente conjugados: o sofrimento causado pela despedida dos amantes, a evocação de um passado de concórdia amorosa irrecuperável ou a projeção do sentimento saudoso na paisagem urbana.
Playlist:
00:00:19 António Mourão – Por Ti
00:06:44 Márcia Condessa – O embuçado
00:12:13 Argentina Santos – Duas Santas
00:16:17 Ada de Castro – Mangerico
00:19:15 Maria Teresa de Noronha – Castanheiro
00:24:21 Filomena – Amália Sempre
00:27:57 Maria Albertina – Fado da Sardinha Assada
00:31:22 João Braga – Nova feira da ladra
00:35:49 Camané – Lisboa de mil janelas
00:40:09 António Campos – Desgarrada 3
00:42:48 Fernando Farinha – Amor velhinho
00:47:00 Manuel De Almeida – Além de Ti
00:50:48 Fernando Maurício – O Meu Bairro
00:52:57 Aldina Duarte – A Estação das Cerejas
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Publicação: Irina Silva
Foto(s): Direitos reservados