Mi-Fá-Dó-Sol | 09 Jan 2025
Carlos Reis e Dino Marques 09/01/2025
Emissão: 09 de Janeiro 2025
Descrição: Programa inteiramente dedicado ao Fado. Realizado por intérpretes do género musical, Mi-Fá-Dó-Sol foca-se na divulgação de artistas e eventos, sem deixar de lado a história e as curiosidades de tão importante património português!
O ciúme é assim uma dimensão do amor e da paixão, tal como virá a sê-lo do “abandono”. A música e a interpretação da fadista transfiguram versos que continuam a ser quase sempre banais, exprimindo o desassossego das recordações amorosas, a amargura de ver o ser amado noutras companhias, o sentimento da traição, algum respeito, apesar de tudo, por quem abandonou a personagem que canta, a coexistência da relação entre quem é vítima do engano e quem engana com uma outra mulher.
Mesmo tendo consciência de que o corpus de poemas para fado que analisámos é bastante escasso, cremos ser possível distinguir algumas das características temáticas e formais que singularizam estes textos. Como é natural, o facto de se destinarem ao canto e ao acompanhamento musical determina alguns dos seus traços de composição. Na realidade, trata-se de poesia para ser ouvida e não lida silenciosamente, o que explica que as qualidades rítmicas e a musicalidade das palavras sejam de importância prioritária. Por outro lado, a o texto poético tem que subordinar-se aos imperativos da estrutura musical da canção e isso implica que o conteúdo tenha que “sacrificar-se” à forma.
Assim, podemos salientar as seguintes características dos poemas para fado estudados: Tematicamente, verifica-se uma nítida recorrência do amor, perspetivado numa ampla diversidade de cenários afetivos, mas geralmente infelizes. O tom predominante é, portanto, disfórico, e o sujeito lírico relata as razões da sua desventura amorosa ou lamenta-se da mágoa causada pela separação ou pela traição.
As referências espaciais reenviam, como seria de esperar, para o cenário urbano de Lisboa e, em particular, para a atmosfera dos bairros antigos e pitorescos, com destaque para Alfama. Trata-se, nestes casos, de evocar o ambiente original do fado e o casticismo dos costumes populares.
Os poemas sobre o fado têm frequentemente um caráter autorreferencial, isto é, remetem para si próprios, auto designando-se explicitamente como fados ou referindo aspetos vários da arte e da cultura do fado. É o caso de “Fado Português”, de José Régio. São, regra geral, poemas com uma forte componente lírica, ligada à expressão subjetiva, ou dramática, quando se trata de interpelar o destinatário ao qual se endereça a confissão ou o lamento. É o que acontece com frequência nos poemas de António Botto. Contudo, encontram-se também poemas que evidenciam uma estrutura narrativa, que relatam pequenos casos sentimentais ou dramas amorosos, como se verifica com o poema de Maria do Rosário Pedreira.
Todos os textos poéticos exploram, de forma sistemática, os recursos métricos, rimáticos e rítmicos, concedendo grande atenção ao potencial melódico das palavras a que recorrem. Assim, as figuras ligadas ao nível fónico, como a aliteração, a assonância ou a rima, ou ao plano sintático, como a anáfora ou o paralelismo revelam-se muito comuns, revelando essa preocupação com a natureza cantável do poema.
Publicado em 1997 pelo poeta Vasco Graça Moura, o pequeno volume intitulado letras do fado vulgar inclui um conjunto de textos poéticos que são por ele expressamente considerados como letras para fados. Independentemente de poderem vir ou não a ser interpretados por fadistas, o autor pretendeu que estes textos fossem organizados semântica e formalmente como fados vulgares, isto é, definidos pela simplicidade de sentimentos e de processos de expressão. É precisamente isso que ele explica no curto prólogo que antecede a coletânea de poemas.
Nesse texto, o autor começa por explicar que compôs estes textos como exercício lúdico de imitação dos lugares-comuns do fado: Na verdade, não pretendem ser mais do que letras de fado propriamente ditas, em que se reencontrem, por logos e acasos da imaginação e da memória, todos aqueles ingredientes como lugares-comuns do fado e a que, à sua maneira, procurou dar alguma expressão. Trata-se de textos que, entre o meditativo, o
contemplativo, o visual e até o anedótico, dizem, portanto, em vários registos humorais, de amor e de ciúme, de saudade, de destino e de morte, de vinho e de zaragatas, de ruas e de luares, da noite e do rio, do vento e do mar, enfim de uma Lisboa tal como ela é concebida na fatalidade de ser filtrada pelo fado.
Existem alguns motivos temáticos predominantes no género musical do fado e que desenvolvem um exercício imitativo, reproduzindo os tópicos que conferem identidade ao fado. Esta repetição de temas e processos é responsável pela vulgaridade do fado, isto é, pela simplicidade dos sentimentos e dos meios utilizados para a sua expressão. A sensibilidade do fado é, portanto, genuinamente original, ainda que tenham sido vários os autores literários que, como Vasco Graça Moura, posteriormente, recriaram este imaginário.
Fala-se em lugares-comuns, porque há no fado uma certa vulgaridade de situações. Talvez por o género implicar uma utilização muito simples da língua, da rima, de certos tipos de metro e de prosódia que se prestem melhor a um ataque da voz ajustado ao género e à música, talvez pela sua própria origem rasteira, popular e urbana, talvez por tratar emoções e sentimentos em termos um tanto ou quanto esquemáticos na própria intensidade com que pretende apresentá-los, talvez por recorrer com frequência a uma espécie de petrarquismo sumário que também encontramos na poesia portuguesa, do Cancioneiro Geral a Fernando Pessoa, talvez até por o fado, regra geral e tal como o soneto, pedir um remate de tipo conclusivo, – há em tudo isso uma dimensão quase sempre inevitável.
Esta relação entre o fado e a tradição literária, do Cancioneiro Geral a Fernando Pessoa, é fundamental, pois sublinha-se que a poesia para fado apresenta, por vezes, semelhanças com a poesia culta de autor. Refere-se que essa relação do fado com a alta literatura encontrou o seu máximo expoente na interpretação dos grandes poetas por Amália Rodrigues.
Sempre que estes aspetos são transcendidos ou excessivamente refinados, sai-se do plano da simples letra de fado para se entrar num outro plano de mais complexa literatura, o que, parece preferível evitar. Procurando fazer letras de fado, por muito que a literatura possa ter também a ver com o caso. Não se pode ignorar que excelentes poetas populares escreveram para o fado, e talvez por isso, é interessante abordar a questão quanto a uma outra dimensão da Literatura.
Amália, nos princípios dos anos 60, mostrou que era possível utilizar alguns grandes textos literários ao nível do fado, sem o descaracterizar (mas tinha um Alain Oulman para lhe escrever as músicas…). Por fim, e comprovando a alternância entre o registo popularizante e o estilo mais culto, Vasco Graça Moura “repartiu-se quase sempre entre o decassílabo e a redondilha de sete sílabas em esquemas estróficos regulares”.
Assim, ao passo que o verso decassilábico é um metro culto, a redondilha é de natureza popular e está, portanto, ligada ao canto e à dança. No fundo, utilizou estes dois padrões métricos, nestas letras de fado, onde coexistem poemas de grande simplicidade temática e estilística com outros mais elaborados literariamente.
Com efeito, a cidade encontra-se presente, de forma expressa ou implícita, em praticamente todos os poemas, como aliás é comum no fado tradicional. São vários os autores que sublinham a centralidade do ambiente lisboeta no fado, quer a cidade seja entendida como um espaço referencial, com os seus bairros, ruas e gentes, quer seja representada como o símbolo da boémia e dos sentimentos excessivos e melodramáticos de que se alimenta o fado.
Playlist:
00:00:19 Manuel Granja – Acordem As Guitarras
00:05:09 Carlos do Carmo – Fado da Saudade
00:10:04 João Braga – Praia perdida
00:13:11 Aldina Duarte – A Voz e o Silêncio
00:17:28 Tony de Matos – Noite
00:21:01 Ricardo Ribeiro – Nos Dias de Hoje
00:25:19 Amália Rodrigues – Disse mal de ti
00:28:59 Maria Albertina – Tricanas de Ovar (1936)
00:31:44 Jorge César – Te Canto Meu Amor
00:35:21 Fernando Farinha – Das horas que um dia tem
00:39:46 Francisco Viana – Lenda das rosas
00:42:14 Tony Gama – O Fado dos Passarinhos
00:46:42 Júlia Silva – Não Venham com treta
00:49:57 Carlos Zel – Quero tanto aos olhos teus
00:54:45 Fernando Maurício – Pergunta a quem quiseres
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Publicação: Catarina Pereira
Foto(s): Direitos reservados