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Mi-Fá-Dó-Sol | 31 Out 2024

Carlos Reis e Dino Marques 31/10/2024

 

 

Emissão: 31 de Outubro 2024

Descrição: Programa inteiramente dedicado ao Fado. Realizado por intérpretes do género musical, Mi-Fá-Dó-Sol foca-se na divulgação de artistas e eventos, sem deixar de lado a história e as curiosidades de tão importante património português!

 

Uma outra figura icónica dos bairros populares de Lisboa surge no poema “fado da sereia”. Trata-se da cantadeira, personagem central na boémia lisboeta.
Neste poema, é recriado o ambiente de crime e marginalidade da boémia lisboeta, associada à vida destas mulheres. A personagem da cantadeira é descrita como uma mulher fatal e capaz de levar os homens à perdição: “e já tinha levado só por vício / três faias e um banqueiro ao cemitério”; “na boca o seu vermelho era sangrento / nas mãos curvava as unhas como garras”; “os olhos eram de aço se os abria / cravando-os em incautos corações”.
Aliás, o facto de lhe ter sido atribuído o cognome de “sereia” comprova esta natureza fatal: conhecida pela sua beleza irresistível, a sereia é também conhecida por atrair com o seu canto os marinheiros, conduzindo-os à morte. Também na figura desta cantadeira a sua beleza sedutora representa um perigo para os homens que com ela se envolvem.
O poema relata a história de vida desta protagonista e apresenta, portanto, um caráter narrativo que se torna mais evidente nas estrofes finais: o sujeito poético, que é o detentor da história, relata o fim trágico desta figura que é assassinada às mãos de um amante traído, comprovando o tom melodramático do caso apresentado.
Contudo, embora tenha contado o seu atribulado percurso de vida, o poeta confessa que não foi capaz de esclarecer o seu mistério: “o que era de contar agora disse-o / fica por desvendar o seu mistério”. A verdade da sua voz e a beleza do seu canto permanecem assim por explicar, deixando perceber o caráter quase místico do seu talento. Este misticismo está, sem dúvida, de acordo com a cultura do fado.
Finalmente, no poema “sinais de cinza”, encontramos uma outra personagem que também se integra na paisagem urbana de Lisboa, mas que não faz parte do pitoresco citadino, como acontecia com as figuras da varina ou a cantadeira. Trata-se de uma toxicodependente, uma personagem que não esperaríamos encontrar numa letra de fado, mas através da qual se denuncia os problemas com que, na época contemporânea, se debatem os jovens na grande cidade
Este poema mostra, pois, como a poesia para fado pode também assumir uma função de denúncia social, expondo problemas das sociedades contemporâneas. Neste caso, o autor não se limita a reproduzir os lugares-comuns do género de que falava na introdução, mas renova a temática do fado, de acordo com a observação crítica e realista da realidade sua contemporânea.
Pode afirmar-se que o amor, em toda a diversidade das suas expressões sentimentais, constitui o tema nuclear do fado. Frequentemente associado ao fatalismo e à predestinação, o amor cantado pelos fadistas é quase sempre infeliz ou mesmo trágico, quer porque não é correspondido, quer porque a ele se associam outros temas de evidente carga negativa como o ciúme, a vingança ou a morte.
Muitas vezes vivido em ambientes noturnos de boémia e marginalidade, o amor e o erotismo representados no fado contribuem decisivamente para o potencial melodramático deste género musical. O poema intitulado “fado do coração vadio” constitui um exemplo evidente da importância que, nestas letras de fado, assume o sentimento amoroso aqui metaforicamente apresentado através do coração vadio.
O fado é, a expressão sincera do “coração vulgar” e dos seus anseios, impulsos e sobressaltos. Ou seja, o poema refere que os devaneios do coração vadio se espelham nos sentimentos expressos nas letras de fado, almejando sempre um outro horizonte de desejo e expressando assim uma insatisfação permanente. É esse estado que faz com que as letras do fado tenham uma pungência excecional.
Analisemos, a título meramente exemplificativo, alguns poemas em que se encontra patente a diversidade da experiência erótico-amorosa expressa no fado “badaladas”:
Badaladas
dava um sino distante as badaladas das quatro da manhã quando partiste fumei mais um cigarro e fiquei triste a ver no rio as luzes tresnoitadas
a ver no rio as luzes tresnoitadas fumei mais um cigarro e fiquei triste
a braçada das rosas numa jarra tingia ainda a sombra transparente
que a saudade adensava tão pungente como a melancolia da guitarra
como a melancolia da guitarra
que a saudade adensava tão pungente
pensei que é este o fado dos amantes que após fugaz encontro se separam da própria eternidade que sonharam e sabem durar só breves instantes
e sabem durar só breves instantes
da própria eternidade que sonharam.
Neste poema, inicia-se a viagem poética por uma badalada que se converte em história na sequência textual. O texto começa com um sino a dar as badaladas das quatro horas e termina com o mesmo sino a assinalar as cinco da manhã. No decurso deste período, o sujeito poético vai revelando o seu estado de espírito triste e melancólico, pela partida da mulher amada. De facto, o amor infeliz deve-se, neste caso, à separação dos amantes e à fugacidade do seu encontro.
Percebe-se que há uma repetição de versos a pontuar todo o poema, como que deixando uma espécie de eco reflexivo. As reiterações do mesmo elemento, num curto período de tempo, potenciam a nossa atenção e tornam a expressão emocional mais intensa. Os poemas de temática amorosa, que frequentemente assumem um tom popularizante (como, por exemplo, acontece nas letras intituladas “fado kitsch” e “ó meu amor, não te atrases”), podem, outras vezes, revelar evidente cuidado literário, aproximando-se da poesia culta

 

Playlist:
00:00:19 Alcindo De Carvalho – Leio em teus olhos (A#)
00:03:08 Magina Pedro – Canção de Fornos
00:07:17 Manuel Russo – Montanha Azul
00:11:36 Manuel De Almeida – Não vale a pena
00:15:25 Fernando Maurício – O Sótão da Amendoeira
00:19:41 Joaquim Campos – Minha Biografia
00:24:05 Maria do Céu Correia – Fado da Carta
00:28:54 António Campos – Tenho Vergonha
00:33:22 Filomena – Trazemos
00:36:42 Amália Rodrigues – Tendinha
00:39:23 António Mello Corrêa – Ovelha Negra
00:42:19 Filomeno Silva – Qual é a cidade¿
00:45:22 Alzira Afonso – Saudades de Quê¿
00:49:39 Joaquim Silveirinha – Bom Jogador
00:52:15 Maria Teresa de Noronha – Fado Rio Maior
00:54:32 Maria Albertina – Marcha de Alfama (1958)

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Publicação: Irina Silva
Foto(s): Direitos reservados

Mi-Fá-Dó-Sol

Vibram as cordas... Bem Vindos ao Fado!

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