Musicatos – O Recital Sublime do jovem pianista João Sá Pacheco
Escrito por AVfm em 02/11/2023
Foi no passado dia 21 de outubro que os Paços da Cultura de S. João da Madeira foram agraciados com a comparência de um jovem pianista de apenas 15 anos, porém de uma musicalidade e presença avassaladoras: o seu nome é João Sá Pacheco, e penso que será consensual que deu provas de um futuro inegavelmente promissor.
Começando os seus estudos com apenas 6 anos na Academia de Música de Vilar do Paraíso, João Sá Pacheco ingressou no Conservatório de Música do Porto com 12 anos, na classe da prof. Dina Resende, com quem estuda até ao momento.
“O conservatório tem excelentes professores, ótimas instalações, instrumentos de alta qualidade e outra coisa que queria ressalvar é a grande quantidade de oportunidades que temos para estar em palco”
conta-nos João sobre a sua experiência.
O músico partilhou que a sua primeira impressão do conservatório foi de admiração, pois o programa exigido era bastante extenso, e a matéria de Formação Musical mostrou-se mais difícil do que estava habituado, contudo, adiantou que rapidamente se adaptou e tem usufruído de ótimas experiências.
João Sá Pacheco encontra nas interpretações dos afamados pianistas Jorge Bolet, Alfred Cortot, Martha Argerich e Radu Lupu a sua inspiração.
Tem sido reconhecido em vários concursos internacionais, entre os quais o Concurso Internacional Santa Cecília (2º prémio, Prémio Melhor Português Júnior B), o Concurso Internacional Luso-Galaico Elisa de Sousa Pedroso (1º Prémio ex-aequo) e o Concurso Internacional Paços’ Premium (1º Prémio, Prémio Revelação).
Foi também o 2º premiado no Concurso CJ.com, no qual revela ter ganho uma das suas melhores memórias em atividades musicais, ao passar à final: “Das melhores memórias que tenho, foi no concurso do CJ.com, em que eu participei sem esperanças nenhumas de passar à final – tinha tocado o primeiro andamento da Sonata Patética e a Sinfonia a 3 Vozes nº 2 de Bach em dó menor, e lembro-me que a prova me tinha corrido mesmo muito mal e perdi logo as esperanças. Já me tinha ido embora do conservatório e liga-me a minha professora a perguntar se tinha corrido bem, e eu estava super desapontado, a dizer que tinha corrido mal e que de certeza que não ia passar à final, e a minha professora diz-me assim: “Mas afinal não sabes? Tu passaste à final!”. Conta, também, que, durante os concursos, faz e até reencontra muitas amizades.
Não só demonstrador de grande mestria a nível técnico, como de uma grande maturidade musical, este pianista veio-nos brindar com um programa incrivelmente diversificado – desde Bach a Debussy, tornou-se bem clara a proficiência do artista na interpretação dos mais variados estilos característicos de cada época musical, bem como uma segurança, expressividade e teatralidade que, na minha opinião, são sem dúvida acima da média.
Começámos com um compositor que também considero acima da média, mas que infelizmente teve uma carreira tragicamente encurtada – o português António Fragoso.
Apesar disso, deixou mais de cem obras musicais como legado, tendo sido interpretados pelo pianista quatro dos seus sete prelúdios, uma das suas mais conhecidas peças para piano: nestas algo pequenas peças, mas extremamente expressivas e maravilhosas para o ouvido, João Sá Pacheco dá provas de um domínio harmónico louvável e de um excelente trabalho na construção das texturas oníricas que caracterizam as obras de Fragoso.
Da minha parte, desde a primeira nota que fiquei logo fascinada pelo uso das dinâmicas no primeiro prelúdio – um prelúdio agitado e potente, mas com uma secção média calma, o tempo e a intensidade com que o músico soube caracterizar as diferentes partes da obra realmente trouxe-lhe um gosto muito mais contrastante, mas ainda assim coeso e deveras cativante.
Os seguintes prelúdios vieram apresentar um som muito limpo, mas sem deixar de encapsular as harmonias extraordinárias criadas por Fragoso, destacando, e bem, a textura e linguagem harmónica fantásticas, extremamente belas que caracterizam as obras de Fragoso, cândidas e acalentadoras.
O espetáculo continua com um Bach brilhantemente executado, demonstrando uma digitação deveras clara e bem trabalhada, para além de uma interpretação de elevada maturidade e com um andamento bem escolhido.
E, em seguida, uma das minhas peças preferidas de todo o recital: a Sonata Patética op. 13 de Beethoven.
Note-se, que por experiência própria posso afirmar, que a Sonata Patética é uma peça que exige imensa preparação, e só o primeiro andamento por si só já dá pano para mangas – exige não só uma concentração enorme para balançar as diferentes secções em toda a sua glória e harmonizá-las num todo, como também imensa preparação técnica para aprimorar todas as técnicas que são usadas ao longo do andamento.
O próprio pianista afirmou tratar-se da “obra mais difícil” a nível técnico, devido às extensas sessões de tremolos que exigem bastante relaxamento e resistência da mão esquerda, para além da parte cheia de mordentes e cruzamento de mãos. O músico explicou que para o 2º andamento, embora não exista tanta dificuldade técnica, é necessário uma grande paleta dinâmica, e também a independência de dedos para fazer acompanhamento e tema na mesma mão. Para o último andamento, um rondó de estilo “Mozartiano” implica a capacidade de fazer um acompanhamento muito leve e o tema com muito fraseado.
E o resultado foi muito positivo – não só o pianista soube realçar de forma magnífica os contrastes dinâmicos que caracterizam a obra de Beethoven, como soube conferir ao primeiro andamento toda a profundidade e dramatismo que lhe estão inerentes.
O segundo andamento tornou-se agradavelmente lírico e deveras doce, e mais uma vez de uma densidade louvável e equilibrada, e seguiu-se daquele que foi o meu andamento preferido: o 3º andamento, um rondó.
Enérgico e cativante, este andamento cativou-me especialmente pelo uso do tempo, para além de ser dinâmico, contagiante e tocado de forma muito vivaz pelo intérprete, transmitindo muito bem o fervor e poderio que podemos encontrar em Beethoven, tendo vários exemplos nesta sonata e também em obras como, por exemplo, o Rondo a capriccio “Rage over a lost penny”, entre outros.
Depois, passamos para uma obra para a qual eu tinha expectativas muito altas, precisamente por ser uma obra que me faz pensar em vários aspetos interessantes, incluindo o contexto histórico em que foi escrita – o estudo op. 10 nº 3 “Tristesse”, de Chopin.
Esta obra é, para mim, muito interessante- Em primeiro lugar, pelo título programático que lhe foi atribuído – bem sei que as alcunhas dos estudos de Chopin não foram dadas pelo compositor, e que ele as considerava pura e simplesmente irrelevantes e despropositadas, mas o nome que foi dado a este estudo foi “tristeza”. No entanto… este estudo está em tonalidade maior.
Há algo de muito especial quando um compositor possui tal mestria que escreve uma peça melancólica em tonalidade maior – na minha interpretação, esta peça é extremamente nostálgica, o que também tem a ver um pouco com o contexto histórico da obra, que foi escrita na altura em que Chopin veio da Polónia, a sua terra natal, para Paris, deixando para trás família, amigos e Maria Wodzinska, cuja relação com o compositor acabaria em 1837 com a desaprovação do seu matrimónio pelos pais dela.
Torna-se, assim, numa peça comovente, com o início docemente entristecido, e no desenvolvimento podemos ouvir as recordações felizes de Chopin que o atormentam até ele entrar em desespero com o seu sofrimento, que se intensifica e intensifica até ele se conformar com a sua tristeza.
O que me surpreendeu nesta prestação foi a sua interpretação única – muitas vezes não me contento quando ouço interpretações diferentes daquelas a que estou habituada, mas esta fascinou-me especialmente pela secção mais agitada, envolta num accelerando poderoso e acentuado, que inesperadamente contribuiu imenso para o contraste em toda a peça, e tornou a sua expressividade mais evidente e veemente, numa parte tão difícil tecnicamente e desafiadora só pela rapidez habitual, quanto mais se for acelerada.
Em seguida, temos uma peça calma e singela, a Rêverie de Debussy: talvez mais difícil em termos de manutenção da sobriedade que lhe está inerente, esta é uma peça muito particular deste compositor, precisamente pelo grau de desenvolvimento estilístico quando ele a compôs. Vista por muitos como um simples jorrar de notas para o papel, trata-se de uma peça que Debussy compôs ainda durante os seus anos de estudante, enquanto não tinha, ainda, bem-estabelecida a rota em termos de estilo que desejava seguir. Naquela altura, venerava Wagner, que se tornaria um pouco a antítese do Impressionismo, e que Debussy mais tarde reconheceria como uma “falsa alvorada”.
Portanto, vendo as coisas por este prisma, Debussy apenas desejava apontar a ideia que lhe tinha surgido quando compôs Rêverie – no entanto, ainda que não seja exatamente o Impressionismo de Debussy enquanto compositor maduro e de estilo formado, esta peça suave e evocativa tornou-se bastante proeminente na obra de Debussy para piano (que acaba por ser um dos principais instrumentos para o qual Debussy escreveu).
Então, este proto-estilo, por assim dizer, na minha opinião, por certo receberá um tratamento diferente do que um Impressionismo em toda a sua glória – e, na interpretação de João Sá Pacheco, gostei especialmente da serenidade que ele conseguiu transportar durante toda a peça. Na minha opinião, esta peça, precisamente por ser tão calma, torna-se mais difícil de ser tocada com sobriedade – isto porque será uma daquelas peças cuja dinâmica deverá ser muito bem calculada, para a sua fluidez não ser perturbada.
Será, por exemplo, como uma secção a quatro vozes numa peça de Bach, no estilo de um coral – se for uma secção lenta, num ambiente sagrado, como é costume num coral, qualquer falso acento ou voz exagerada será como um bater de pratos no meio de uma igreja. Que é como quem diz, nós, naquele ambiente tão tranquilo e angelical, apanhávamos o susto das nossas vidas.
É nesse sentido que achei impressionante a maneira como o pianista manteve a calma na interpretação da Rêverie ao longo de toda a peça, enquanto mantendo tudo fluido e equilibrado – mas, para além disso, achei, também, fascinante o uso do pedal durante a peça.
Isto porque Debussy, no pico do seu Impressionismo, ao escrever para piano, possuía muitos apetrechos: escalas exóticas vindas de todas as partes do mundo (escala hexáfona, pentatónica, modos gregos e afins), o uso do timbre, textura e cor muito bem trabalhada, e, mais importante para o aspeto que eu queria focar, o uso quase “exagerado” do pedal. No entanto, tratando-se de uma peça “precoce” na carreira de Debussy, foi muito interessante a maneira como o artista soube adaptar o uso do pedal à peça em questão, para melhor balançar uma obra que, apesar de diferente de outras mais tardias, continua a ser harmonicamente densa, sendo que o uso em demasia do pedal poderia perturbar o seu ambiente.
E, por último, uma peça que considero um dos “ex-libris” do recital, quer em termos de composição, quer de interpretação – Chapelle de Guillaume Tell, de Franz Liszt (que, só por acaso, é o meu predileto em toda a panóplia de compositores).
No geral, foi uma interpretação muito dinâmica e agradavelmente dramática, e aquilo que destacaria mais, seria, porventura, a profundida e fraseado impecáveis – particularmente no desenvolvimento, foi deveras interessante a profundidade do baixo, que veio dramatizar e diria, até, “programatizar” a peça, no sentido de lhe atribuir uma componente mais descritiva. Isto no sentido de o próprio título ser um título programática, ou seja, que reflete uma situação em vez de uma estrutura musical que possa ser aplicada a uma peça (por exemplo, uma sonata remete para a estrutura em que é escrita, enquanto que um noturno remete para o seu tema, a noite).
Sendo Liszt um compositor tão multifacetado, que escreveu obras imensamente sentimentais, a mais conhecida neste género sendo, provavelmente, Liebesträum nº 3 (Sonho de Amor), mas também obras de cariz mais programático, e, abrindo, de certa forma, as portas para o Impressionismo, de onde poderíamos destacar os Années de Pelegrinage, por exemplo, foi agradável ver esta distinção ser feita por João Sá Pacheco, que mostrou proficiência em transportar para a peça este sentido narrativo.
E, por último, tivemos direito a um encore muito especial – uma peça da autoria do próprio pianista, Prelúdio em Lá Maior, op. 2 nº 1.
Nesta peça, aquilo que mais me surpreendeu foi, em tão tenra idade, João Sá Pacheco já ter uma noção tão sólida da maneira como os compositores constroem e densificam o som: com uma dimensão sonora que fará lembrar um Beethoven ou um Liszt, é com frescura e novidade que o pianista adiciona à sua peça progressões de acordes interessantes e várias texturas diferentes, numa peça pequena, como sugerido pelo nome, mas frondosa e interessante.
E foi assim que terminou o recital de um novo e entusiasmante talento, cujo percurso, sem dúvida, é merecedor de ser acompanhado – portanto, fica aqui o repto para quem quiser descobrir um jovem artista já tão talentoso e especial: creio que quem o ouvir num dos seus próximos recitais, que com certeza serão muitos, não se vai arrepender.
[give_form id=”81006″]