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Grigory Sokolov na Casa da Música – Um Concerto Imperdível

Escrito por em 06/04/2023

“O Último Titã” – eis o título digno de um filme, com que muitas vezes é apelidado o pianista russo Grigory Sokolov.

Mundialmente conhecido e consagrado, quer pela sua dedicação inesgotável à Música quer pelo seu perfecionismo, clareza e atenção ao detalhe que permeiam todas as suas interpretações, este pianista extremamente aclamado tem vindo a alcançar feitos incomparáveis e maravilhar um sem-número de audiências pela sua técnica irrepreensível, que alia a um conhecimento, experiência e musicalidade superiores em cada obra que apresenta ao público.

E, desta feita, foi a vez dos espetadores da Casa da Música assistirem a este gigante do piano, no passado dia 22 de Março na Sala Suggia – um recital dedicado tanto ao barroco Henry Purcell como ao clássico W. A. Mozart, em que o artista demonstrou mais uma vez a sua mestria em toda a variedade de repertório.

Grigory começa Ground in Gamut sem rodeios, num ataque quase imediato a uma peça que se revelaria de caráter jovial, com uma delicadeza magistral acompanhada de um lirismo impecavelmente trabalhado, sem esquecer a impecável interpretação do estilo barroco de Purcell – relembrando que este ground é uma peça composta a partir de um baixo ostinato, ou seja, que se repete até ao fim da obra.

A obra prossegue para uma fusão de temas, um mais gaiato, no entanto outro que surge mais solitário, pesaroso, numa quietude dolorosa que, a pouco e pouco, se torna a solista desta peça. Começamos a denotar que, ainda que o baixo possa ter ligeiras variações, a progressão de acordes é fundamentalmente a mesma.

Sokolov encerra o seu público na sua atmosfera densa, penetrante, até que começam a brotar notas de determinação, de uma exposição mais acirrada da deriva e cadência que caracterizariam esta passagem, e descendemos, de novo, para um tema mais gaiato, no entanto, de uma maneira mais inconclusiva – como se o sujeito lírico, depois de toda a solidão e deriva, nunca mais tivesse voltado a ser exatamente o que era.

O que se seguiria seria um tema denotadamente mais heroico, vivaz, confiante, como se de um tema relacionado com uma ida à caça se tratasse – no entanto, o tema volta a entrelaçar-se com um tema menor, voltando ao alegre, mas mais ritmado, até um pouco contrapontístico, acentuando a técnica irrepreensível de Sokolov na clareza dos seus ornamentos.

Depois, teríamos uma peça muito mais cheia sonoramente, mais dramática, os legatos formando uma atmosfera intensa, de emoções apertadas, que Sokolov executa com um lirismo e equilíbrio de tal maneira refinados, que torna a ligação para um tema mais polifónico absolutamente perfeita.

E, então, encontrar-nos-íamos com algo novo: o sujeito lírico estava triste.

Mas verdadeiramente triste. Não em pensamentos profundos, nem sequer apenas preso em quietude. Estava mesmo melancólico.

Ouviríamos uma mistura entre algo guerreiro e uma angústia profunda, de muitas camadas, que Sokolov capturou até ao ínfimo no seu equilíbrio dinâmico – uma demonstração impressionante de como trabalhar com polifonia, em que o pianista prende um sentido de flutuação, uma flutuação de emoção para emoção, de revolta para revolta.

Assim, um compositor que poderá oferecer uma ideia errada por ser do período Barroco revela-se deveras polivalente – e, se há compositor Barroco que pode contrariar esta ideia de uma música muito restrita e matemática, é… bem… são todos os compositores do Barroco. Ou quase todos.

E, até nesse aspeto, ainda que alguns possam franzir o nariz ao ver o nome de Purcell no programa, Sokolov fez um excelente trabalho a introduzir-nos à magnificência do trabalho deste compositor.

E, em seguida, ouviríamos uma peça de caráter mais cru, perseverante, que rapidamente se transforma nalgo muito mais imersivo liricamente, com uma paleta harmónica que abraça perfeitamente este caráter mais construído da peça. Depois, uma obra num registo muito mais agitado, pungente, seguido de um tema muito mais doloroso, e depois decidido, como que em jeito de cadência.

Sokolov faria, também, brilhar uma peça de uma interligação melódica pura e simplesmente deliciosa, e o pianista realiza esta pergunta e resposta de forma tão naturalmente apurada que faz, mais do que nunca, transparecer a sua atenção ao detalhe quase religiosa.

E, assim, encerraríamos o território de Purcell, e sinceramente? Nunca tinha visto alguém pintar Purcell de uma maneira tão expressiva, variada e rica.

Terminado o repertório do compositor britânico, a audiência é introduzida a uma época e estilo diferentes. Desta vez, Sokolov demonstrar-nos-á a sua perícia e musicalidade na interpretação de W. A. Mozart, e de repertório do período do Classicismo.

Logo no início, nos aperceberíamos do trabalho perfeitamente ajustado estilisticamente do pianista, que interpreta a peça sempre fazendo jus à sua cadência e dinâmica, com a graciosidade característica desta época musical.

Mais uma vez, o artista enfatiza remarcavelmente uma perceção minuciosa e extremamente rica da obra que interpreta, conseguindo algo tremendamente interessante e que define um bom instrumentista: o de coadunar o caráter estilístico da peça com aquilo que provém da sua própria visão única de como a peça deveria ser tocada.

A peça continua, sempre no seu registo majestoso e cuidado, de uma forma extremamente clara e articulada, expressa maravilhosamente por Grigory. No entanto, seríamos guiados para uma passagem mais incerta, ainda que nunca perdendo a razão e equilíbrio de um Mozart.

E é aqui que surge um ponto curioso. Eu usei a palavra equilíbrio, certo? E também tinha usado esta palavra com Purcell.

E o que é relevantíssimo nisto é que estes dois equilíbrios eram diferentes. Porque até nisso Sokolov soube distinguir os períodos diferentes de onde o repertório provem – em Purcell, o equilíbrio soa mais a um balanço entre a polifonia, Sokolov resguardando-se mais na perceção dinâmica e articulação das várias vozes, enquanto que, no Clássico, este equilíbrio, em vez de ser tão denso como no Barroco, distingue de forma muito objetiva a melodia do acompanhamento, não mostrando a mais pequena indecisão, mas sim uma clareza e ordem meticulosamente trabalhadas.

Então, é assim que é introduzido um estilo diferente, e interpretado de forma perfeitamente separada e concebida, obra do génio de Sokolov, que faz denotar esta diferença de uma forma que magnifica, em muito, todos os atributos incontornáveis na obra do compositor austríaco.

Em seguida, somos envolvidos por um tema de uma candura palpável, uma alegria inocente, jovem, como que uma nostálgica memória infantil, que, apesar de por momentos ser colocada em questão, acaba por nos voltar a descansar.

A peça, de tal maneira bem trabalhada sonoramente, adquire um tom brilhante, e a articulação e clareza magníficas do pianista russo-espanhol elevam-na a uma sonoridade de tal maneira vivaz e cheia de caráter que rivaliza com uma passagem de uma sonata de Beethoven.

Depois, é com uma breve passagem mais sustentada que acabamos por descobrir uma certa indecisão, que, no entanto, é contrariada por uma resolução mais airosa, que consegue adquirir um carisma vivaz, mas também suave ao mesmo tempo.

Uma modulação deveras curiosa enceta um estupendo e, devo dizer, inesperado alargamento da paleta harmónica, e gera uma sonoridade cada vez mais cheia e musicalmente relevante, que se propaga até ao fim decisivo desta peça.

O que segue é uma obra de uma pureza, alegria, de um divertimento verdadeiramente contagiantes, que serão substituídos por um registo mais grave, que será ainda complementado pela melodia, obtendo-se algo ainda mais dinâmico, a clareza característica de Sokolov abrilhantando uma melodia incessantemente carismática, e introduzindo, até, um certo dramatismo, em perfeita medida em termos de contraste.

A peça termina certeira, em contraste com o que se segue, um tema muito mais depressivo, que se torna de uma sustentação clara, envolvente, mas também delicada, que levará a um retorno ao alegre.

Chegamos a um acorde caloroso, de tal ordem bem timbrado que nos faz perceber que algo vai mudar – a atmosfera é agora vagueante, dramática, e o uso de cromatismos renova completamente a expressividade da obra. O pedal é extremamente bem colocado, tendo em conta a época em que a peça se insere, quer tendo em conta a expressividade da peça, quer o uso extraordinariamente relevante de uma linguagem harmónica mais alargada utilizada por Mozart.

E, penso que chegámos aqui a um ponto muito curioso a focar: à medida que ia falando sobre o repertório mozartiano, falei muitas vezes no alargamento da paleta harmónica. E isto porquê?

Porque as dissonâncias são muito conhecidas como um atributo do período Romântico, e o Clássico normalmente baseia-se muito na tonalidade. No entanto, ao contrário do que se possa assumir, as dissonâncias e cromatismos, entre outras pequenas “fugas” à tonalidade, não surgiram no Período Romântico.

Foram, isso sim, popularizadas no Período Romântico, pois, na realidade, estas já existem desde a Idade Média – por isso, é muito interessante reparar na maneira como Mozart usou estes ligeiros “alargamentos” da tonalidade nesta obra, e como isso afetou radicalmente (e para melhor) a expressividade da obra.

E, por falar em Período Romântico, vamos agora provar um gostinho de vários períodos da música erudita com alguns encores do pianista – e, note-se, este pianista é conhecido pelo bom número de encores que costuma tocar no fim dos seus recitais.

Do nosso set de encores constariam duas mazurkas de Chopin, distinguindo perfeitamente o seu carisma e pungência, com cada ritenuto, cada rubato utilizado deliciosamente, e depois teríamos mais uma obra do compositor polaco, neste caso um dos seus afamados prelúdios, em que dominaria um dramatismo que estaria inerente a toda a peça.

Grande é a expressão musical de Sokolov ao interpretar um dos (excruciantemente difíceis, convenha-se) estudos de Rachmaninoff. Este revela-se heróico, poderoso, de fastio, grandeza, fazendo jus ao exato estilo de alguns estudos de entre o repertório de Rachmaninoff ou Liszt, ambos compositores e virtuosos do piano (e detentores de um par de mãos invejáveis em tamanho, não escrevessem eles intervalos nas suas peças que poucos conseguem tocar sem arpejar).

Depois destas peças, que adquiriu um brilho fantástico na interpretação do pianista, voltaríamos ao princípio, ou seja, ao Barroco – mas com uma abordagem muito interessante a uma obra do alemão J. S. Bach.

Este trata-se do Prelúdio BWV 855ª, que foi arranjado para piano por Alexander Siloti, cujo período de vida se encaixa no período Tardo-Romântico (se bem que isto depende dos termos que cada um escolher usar), e o que eu considero tão relevante nesta interpretação é que Sokolov, na minha opinião, faz exatamente o que faria um dos seus ídolos, o canadiano Glenn Gould: quando Gould toca Bach, não ouvimos Bach. Ouvimos Gould.

E o facto é que, na altura do Barroco, os intérpretes eram muito mais valorizados que os compositores, pelo que os compositores deixavam muito à escolha do intérprete, desde articulações e andamento a dinâmicas – qualquer destes elementos que esteja numa edição foi colocado por um editor, e não pelo próprio compositor. Por isso, Sokolov fez muito bem em inovar e adicionar o seu próprio toque à peça (até com um pouco de pedal? Ousado… adorei), porque tornou-a refrescante e irreverente, ainda que já seja tocada há séculos inteiros.

E assim se retirou o pianista, deixando-nos em espanto e com uma noite inesquecível para relembrar, em que experienciámos tudo, desde a sua clareza até ao seu lirismo e delicadeza, e pudemos constatar, mais uma vez, aquilo que já há muito se sabia: Sokolov é um verdadeiro génio, e um nome incontornável na performance pianística.

Mas, não é nada que o Mundo já não soubesse. O pianista pode não aceitar muitas gravações ou entrevistas, mas não é preciso muito para nos apercebermos do seu talento incomensurável, da sua dedicação monumental, da fortuna que temos por Sokolov poder demonstrar a sua capacidade musical magnânima a todos os que o quiserem ouvir.

E que nos irá envolver, e permear, e comover, até ao fim dos tempos, porque a Arte é imortal.

E Grigory Sokolov, sem dúvida, já há muito tempo ganhou o estatuto de alguém cuja obra merece ser relembrada para todo o sempre.

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Fotos: Direitos Reservados
Texto: Mariana Rosas

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