João Lencastre celebrou a harmonia e o ritmo na abertura do Ovar em Jazz
Escrito por AVfm em 15/04/2025
Para uma mente recentemente educada formalmente no Jazz, a primeira coisa que pensei ao ouvir este concerto foi: “então isto é que deve ser free jazz…”.
Pensamento inconsciente, que me deixou à procura de uma resposta para a sua ignição ao longo de todo o concerto. Não porque o free jazz me tenha sido apresentado como um bicho-de-sete-cabeças, longe disso; antes como algo de elevado grau de complexidade, cuja compreensão exige imenso conhecimento e estudo da matéria.
Assim, será mais adequado começar por estudar géneros “menos complexos”, dizendo-o de forma pouco lisonjeira, sem o pretender ser de todo, visto não ter tido grande contacto prévio com o free jazz.
Talvez, por isso, o arranque do concerto tenha sido surpreendente, porque foi completamente inesperado, fazendo-me lembrar a eletroacústica de Radiohead, os solos do L.U.M.E. de Marco Barroso ou a Sinfonia de Berio. Na verdade, transportou-me para a música de Luciano Berio, de forma inesperada!
Logo de seguida, de forma subtil, entramos numa toada mais reminiscente daquilo que porventura associamos à linguagem musical do jazz na vertente mais tradicional, digamos que dotado de um caráter tão fresco, vivo e dinâmico; que de imediato o relacionamos com o título do trabalho que Lencastre nos vem apresentar. O que ouvimos é, efetivamente, uma autêntica celebração…

Claro que, sempre com o espírito e a tentar analisar o porquê de entender a música assim, me perguntei: “o que é que nos traz este sentido de celebração?”. Questão bastante subjetiva, porventura, e assaz complicada; que me posicionou num ângulo magnífico para encontrar novos e maravilhosos detalhes na música de João Lencastre.
Sem falar muito da técnica da harmonia, que pode certamente ser explicada com os modos mixolídios e ultra lídios das escalas alteradas de não-sei-do-quê (mais as b13’s e b9’s todas deste mundo), para alguém que fica orgulhosa por identificar auditivamente um 2-5-1, não posso deixar de referir, em particular, o meu apreço pela tensão harmónica criado pelos sintetizadores e teclados; além da linguagem harmónica interessantíssima que descortinei na linha do contrabaixo. Acima de tudo, o que apreciei ainda mais na música, e o que acho que realmente lhe dá esse cariz de celebração, é o uso do ritmo.

Ritmo esse que, honestamente, me foi amplamente aberto desde que comecei a estudar jazz, e algo que pessoalmente, como compositora, ainda estou a aprender a dar valor, num processo gradual, mas fantástico. De facto, já Mozart dizia que o que há de mais importante na música é o ritmo. E o que me fascinou em todo este ritmo “celebratório”, chamando-lhe assim, é ele ser um pouco o “fio condutor” de toda a música, ou pelo menos a ponte entre os temas em si e a improvisação. Fui seduzida pelos momentos estilisticamente mais “free”, ou mais livres para exploração contemporânea e sugestão sonora mais abstrata, por se revelarem articulados e despojados de cariz artístico discutível (estilo ready-mades de Duchamp, ou 4’33’’ de Cage), trabalhados com ritmos relevantes e inovadores pontuados por timbres, texturas e ambientes musicais sinceramente interessantes (fazendo-me lembrar algum Radiohead, ou até Fiona Apple); que, sendo completamente honesta, vou manter em mente para próximas composições. Um dos temas em que apreciei mais esta característica é de Thelonious Monk, um dos primeiros; artista que admito, com alguma vergonha, ainda não ter tido a paciência de dar uma segunda audição, após um primeiro contacto um pouco falhado. Para ser completamente sincera, estou convicta que Thelonious Monk é aquele artista de que ninguém gosta à primeira; algo que já verifiquei ao trocar ideias com os meus colegas sobre pianistas de jazz.
Já Brad Mehldau, por exemplo, é sucesso imediato e garantido. Coltrane, idem aspas. Talvez Jarrett demore um bocadinho mais… Posto isto, uma coisa é certa; vale a pena tentar ouvir Thelonious outra vez.

Outro aspeto ligado ao ritmo, dentro da questão tímbrica e textural, que me intrigou desde que li a sinopse do concerto foi a presença de duas baterias.
Em que é que isso se traduz? Sendo João Lencastre, o frontman do grupo baterista, foi interessante perceber os efeitos que ele podia obter com esta dimensão percussiva acrescida. Seja em formações pop-rock ou jazz, a secção rítmica terá sempre presente, na sua vertente mais convencional, um instrumento percussivo (bateria, por exemplo), e um instrumento de registro grave que concretize a linha do baixo (contrabaixo ou guitarra baixo). Assim, havendo duas baterias nos temas, é permitido ao contrabaixo, em momentos mais abstratos da linguagem musical, livrar-se temporariamente das funções de walking bass, adotando novos timbres e texturas musicais, a par do sintetizador.

Instrumento tão interessante, o contrabaixo, com um registo tão cativante, sonoridade densa e extravagantemente dinâmica; e carácter com tanto de robusto e duro como de sugestivo e contemplativo. Ouvir um lado mais experimental e explorador do contrabaixo, numa simbiose impressionante com o sintetizador, foi verdadeiramente inspirador para alguém cujas primeiras experiências de composição de influência jazzísticas passaram, efetivamente, por tentar levar o contrabaixo a assumir esse protagonismo… Exigente, mas vasta jornada, interessantíssima tanto do ponto criativo como auditivo!
Revisitando a questão dos timbres (pela última vez, prometo), especialmente quando tivemos a oportunidade de ouvir as duas baterias a solo, tornou-se óbvia a camada mágica que esta duplicação de instrumentos nos entrega. É, de facto, algo destaca todo o experimentalismo e inovação que tornaram todas as interpretações agradavelmente refrescantes, de um teor musical denso, único e especial…

Concluo dizendo quão agradável e surpreendente foi a abordagem expressiva e cativante dada aos temas; sendo a Arte um objeto tão polémico nos tempos que correm, que se torna comum ouvirmos pontadas mais céticas sobre a real delimitação do objeto de conteúdo artístico. Contudo, o elogio mais significativo e sincero que posso tecer à música que ouvi neste concerto é que há em todo ele um sentido nato, direto e indubitável; de coração e sentido artístico. Um sentido vivo e exuberante, um fervor de coração e um groove inalienável que tornam as interpretações indubitavelmente fabulosas e, atrevo-me a dizer, geniais.
Em suma, música completa e dinâmica; acima de tudo e, sem dúvidas, especial. Definitivamente uma dose a repetir!