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Maria do Mar, Banda Sonora de Bernardo Sassetti – Uma Experiência Enriquecedora

Escrito por em 04/07/2023

10 anos – foi, de facto, uma década inteira que levou a completar um dos trabalhos cuja criação deu mais prazer a Bernardo Sassetti: a emocionante e carismática Maria do Mar.

E, compreensivelmente, este não foi tarefa fácil – ao propor-se a compor banda sonora para este filme, Sassetti viu-se comprometido com o projeto deveras trabalhoso de compor música que se ouviria durante o filme inteiro, do início ao fim, para um dos mais importantes marcos no cinema mudo português.

Demonstra-se, assim, o enorme amor de Sassetti pela cinematografia e um exímio conhecimento e sensibilidade à ação que decorre em “Maria do Mar”, de Leitão de Barros, que pontua toda a música com um enorme sentido dramático e louvável fluidez e expressividade.

E isto é algo que denotamos desde o início: a banda sonora começa logo espontânea e cheia de vida, tornando-se depois mais melancólica ao apresentar a cidade da Nazaré, onde tantos infortúnios acontecerão – aliás, tal como é costume nas bandas sonoras de Sassetti, desgostosas e líricas. Esta caracterização é concretizada de forma magnífica, fazendo com que a música agudize ainda mais o quão dura e adversa é a vida marítima que se leva a cabo aqui na Nazaré.

Mas a seguir ouvi algo, para mim, ainda mais impressionante – ao se apresentar as diversas personagens, a música metamorfoseia-se para refletir o caráter de cada uma das personagens que é apresentada – com efeito, quase que ficamos a conhecer um pouco sobre cada uma antes de sequer se desenrolar a ação.

No entanto, para mim, o verdadeiro destaque desta secção foi o tema de Maria do Mar – a música que surge quando ela entra em cena é simplesmente enternecedora pela sua graciosidade e caráter quase valsado, que a torna imensamente doce, para além de inocente, leve e terna. Neste momento ela encontra o pai alegremente, com tal felicidade que nos faz querer que a família continue assim.

Contudo, esta candura é efémera – é exatamente a música que prenunciará que algo trágico se vai passar, e aqui temos o primeiro exemplo deste facto, quando o tema de Maria do Mar se torna mais cheio quando ela sai de cena.

Continuamos a ouvi-lo no piano, mas a linguagem harmónica muda, torna-se mais indecisa, tudo está mais indeciso. A música é agora inquietante e permeada por dissonâncias, assumidamente profunda e aflitiva – complementa, agora, na perfeição os olhares de angústia e preocupação das gentes da Nazaré, solenes e desconcertadas perante o mar imponente.

E é então que ouvimos as terríveis notícias – houve um naufrágio, ao qual não sobreviveu o marido da “Ilhôa” – a música torna-se tão leve e à deriva que se torna tormentosa, e, de seguida, Sassetti faz um uso magistral das dinâmicas ao encher o som e voltar a decrescer, acompanhando a ação muito melhor.

Mas há um sobrevivente! – é precisamente o pai de Maria do Mar, que aparece por entre as ondas: enquanto isto causa alívio à família, causa ira na “Ilhôa” e na restante população, culpando a sua ambição pelas mortes dos companheiros.

Mas, claro, estava a faltar a típica busca pelo silêncio característica deste compositor – e ouvimo-la, precisamente, num elemento percussivo recorrente ao longo da obra, que se assemelha a algo muito interessante: o bater do coração.

Agora contactamos com o anúncio da desgraça ocorrida, marcado por um tema trágico, devoto, que em muito amplifica o poder e a pungência de uma população cuja única esperança reside na sua própria fé.

E, agora sim, um elemento pura e simplesmente brilhante: ao assistir à cena em que o pai de Maria do Mar se suicida por entre as ondas do oceano, ouve-se nada a não ser silêncio enquanto vemos as reações entre os olhares dos presentes – apenas esta quietude sórdida acrescenta uma camada inteira de sofrimento àquela que vemos no filme, e assinala o conflito que irá marcar o resto da narrativa.

Todavia, assomam novos tempos e a música torna-se de novo imersiva e vivaz – e, com isso, ouvimos de novo um muito apreciado som da nossa própria etnomusicologia: algo muito bem empregue, dado que, apesar de dramatizado, este filme pretende retratar, precisamente, a maneira como se vive no espaço em que ele decorre.

O perigo que o mar personifica é quase que exposto pela música como algo rotineiro, o que nos faz questionar, agora, se Manuel, a nova personagem que é introduzida, estará seguro.

Este trata-se do filho da “Ilhôa”, que ainda se debate ativamente com a mãe de Maria do Mar pelo infortúnio que aconteceu ao seu marido – não obstante, hoje o acontecimento que se celebra é diferente, pois Manuel se introduzirá na atividade do pai, e a música que se ouve faz-nos questionar o seu destino.

Mas não por muito tempo – temos de novo um momento de devoção, mas desta vez marcado por alegria, como se o mar, anteriormente intimidante, simbolizasse agora conexão, e até mesmo divertimento. A narrativa torna-se leve e humorística, acalmando, de certa forma, os ânimos (ou desânimos) anteriores.

Porém, desponta um tema reminiscente de algo que já ouvimos, no entanto mais violento, pungente. Maria do Mar está em apuros e em perigo de se afogar, e a música torna-se assaz intensa ao vermos Manuel a entrar no mar para salvá-la.

Finalmente, um desenlace feliz – Manuel sai da água com Maria do Mar nos braços, e ainda se vive um clima de agitação, mais pontuado devido à presença de mais personagens, que conseguem reanimar a rapariga com sucesso.

A passagem seguinte foi o exemplo perfeito de algo que se nota por toda a banda sonora – a maneira genial como Sassetti representa, a partir da música, os diferentes tipos de ação.

Claramente, não foi ao acaso que este compositor foi o escolhido para escrever música para este filme: nota-se perfeitamente que Sassetti faz uma distinção entre os momentos mais intensos emocionalmente e aqueles com mais riqueza em termos de diálogo, ou uma ação mais repentina, com mais personagens. Quando temos momentos emocionais ou introspetivos, como quando Manuel salva Maria do Mar, ou quando a filha deles nasce (já estou a dar um pouco de spoiler), a música é mais intensa, profunda, e sobejamente imersiva.

Porém, quando são cenas com muito diálogo e mais personagens, a história já é outra – a música torna-se muito mais mexida e contagiante, e adquire, assim, um caráter urbanita e que se associa a um desenvolvimento mais rápido da ação.

Em seguida ouvimos o que, para mim, foi uma passagens mais bonitas em toda a obra até ao momento – entra, pela primeira vez, em cena a voz de Filipa Pais, e o instrumental que a acompanha é extremamente expressivo, não ficando nada atrás da divinal melodia da cantora, com uma letra especialmente musical devido à maneira como soavam as palavras. O lirismo nesta parte é maravilhoso, e a harmonia imensamente rica, e tudo isto realça a importância do momento que vemos na tela, que acabará por ser fulcral no desenvolvimento do filme.

Depois de uma já jovial música que acompanha a época festiva retratada no filme, surge uma passagem ainda mais gaiata e grandiosa ao observarmos Manuel e Maria do Mar na igreja, seguindo-se um tema muito sentimental e doce.

Mais uma vez, toda esta alegria revela-se sol de pouca dura – voltamos a ouvir o ritmo desconcertantemente fluido que marca conflito ao longo da banda sonora. Maria do Mar e Manuel terão, agora, de arranjar maneira de sobreviver sem o apoio das suas famílias, e apenas ouvimos breves momentos de alegria ao presenciar algum tipo de interação entre os amantes, sendo o resto da passagem pontuado por harmonias contraditórias e pesar.

Mais uma vez entra a voz em cena, tornando-se muito interessante a maneira como a voz é usada para assinalar os momentos principais da narrativa: ao longo de todo o concerto, esta apareceu apenas duas vezes, criando assim uma linha de ação mais clara e fácil de seguir, enriquecendo as partes focais com uma “magia especial” que as faz destacar das outras partes do filme.

Mesmo assim, a minha parte preferida de todo o filme foi a seguinte – é pura e simplesmente magnífico o tema que é tocado quando a filha de Manuel e Maria do Mar nasce, incrivelmente delicado e terno, e indubitavelmente encantador.

Contrastantemente, é quando ela se encontra em perigo que se ouve uma das passagens mais dramáticas e dolorosas – o andamento pesante, mas certeiro do desfecho desta passagem torna-a ainda mais angustiante, e faz-nos tomar o pior quase por certo, redobrando o alívio ao verificar que a menina está bem.

E, finalmente, esta magnífica obra termina com uma resolução alternadamente terna e grandiosa, com um belíssimo desfecho – toda a família se reúne, quase como um milagre, e, por fim, depois de toda a tormenta, um final perfeito, absolutamente feliz.

E é assim que chegamos ao fim de uma obra incrivelmente rica e expressiva, que faz tão bom uso dos elementos que incorpora e adquire musicalidade de maneiras extremamente criativas – na minha opinião, esta é, sem dúvida, um dos grandes marcos não só na obra de Sassetti, mas também na história da banda sonora portuguesa.

Mas, antes de tudo isso, é uma obra simplesmente extraordinária no seu próprio direito, e que foi eximiamente interpretada neste concerto, que marcaria os 53 anos do nascimento de Bernardo Sassetti.

E, sem dúvida… foi uma deslumbrante homenagem.

Fica disponível, no player em baixo, uma entrevista a Pedro Burmester no âmbito deste concerto.

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Fotos: Direitos Reservados
Áudios: Jaime Valente
Texto: Mariana Rosas

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