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O Bando de Surunyo Que Sonoramente Canta – Uma Experiência Magnífica

Escrito por em 19/06/2023

Foi no passado dia 11 de Junho que O Bando de Surunyo e o ensemble Musurgia nos trouxeram uma excelente oportunidade – a de ouvir música que não só remonta ao vastíssimo legado musical da Idade Média, Renascimento e Barroco, mas que faz parte dos vários segredos por descobrir que permeiam o repertório musical do nosso país.

Dando vida a uma série de obras originárias da tradição ibérica, várias dos arquivos que passaram muito tempo inexplorados na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, este grupo apresentou-nos, nada mais nada menos, do que um ramo da Música incrivelmente vasto e diverso, desde música palaciana e tocada na corte até vilancetes negros da altura dos Descobrimentos.

O concerto começa com uma obra simplesmente épica – trata-se de “La Justa”, de Mateo Flecha el Viejo, uma obra teatral e grandiosa em que logo nos apercebemos do registo de parte do repertório deste concerto: quer se trate de peças religiosas, quer peças para ambientes aristocráticos, uma grande componente delas é dramática, e a história que representam é clara e vívida, quase como que uma pequena ópera.

Neste caso, tal como o nome da peça indica, temos uma luta, mas não uma qualquer – uma justa, em que temos dois combatentes que batalham até à morte, em defesa das suas damas e com apoio dos seus padrinhos, que os patrocinam.

Neste caso, trata-se de uma justa pela salvação do Mundo, em que Jesus consegue vencer e relançar a paz sobre o Mundo – mas não sem a devida apresentação dos combatentes e personagens e fanfarra de cada um, primeiro.

A atmosfera é, ao longo de toda a peça, extremamente evocativa e garrida, e sem dúvida que transmite a narrativa de maneira chamativa e detalhada, capturando o ambiente que pretende transmitir do início ao fim – e algo que, para mim, sem dúvida se destacou nesta peça, foi o uso da sonoplastia.

Aliás, isto é algo que não me surpreende pela primeira vez, ou seja, não é o primeiro atributo presente na Música Antiga que eu acreditava ter sido usado apenas posteriormente – tal como os cromatismos e dissonâncias, normalmente referidos como muito comuns no Romantismo, mas na verdade já usados na Música Antiga, a sonoplastia vocal, que normalmente poderia ser associada a correntes estilísticas como o Jazz, por exemplo, encontra-se já presente na música desta época, e em muito acrescenta ao sentido de teatralidade referido anteriormente, tornando a atmosfera da peça muito mais criativa e aprofundada.

Em seguida, seria dado destaque ao ensemble Musurgia, que colaborou com O Bando de Surunyo neste concerto – poderíamos, agora, ouvir um arranjo instrumental de uma peça vocal, uma prática muito comum na Música Antiga, que marcou principalmente pelo belíssimo diálogo construído entre as flautas. Airoso e desenvolto, quase que um contraponto sem intenção, no entanto perfeitamente interligado e exatamente no momento certo, esta característica transmitia um pouco de um sentido de deriva, algo que foi maravilhosamente abraçado pela linguagem harmónica da peça.

Nas 3 peças seguintes, seríamos transportados para um ambiente diferente – estas peças já não são para ser representadas em contexto de igreja, mas sim na corte, num ambiente mais palaciano. E, para além disso, tal como a anterior, elas tratam o amor, um tema tão universal e tão comum neste tipo de música.

Em “Que Sonoramente Canta”, mais uma vez me surpreendeu a interligação das vozes, mas desta vez pelo equilíbrio conseguido entre as vozes – enquanto tinham papéis bastante equiparados em termos de dinâmica, este facto não tornava a peça confusa, mas sim ainda mais harmoniosa, algo a que ainda acrescentava o trajeto melódico dos instrumentos, que acompanhava e imitava as vozes.

Em seguida, em “A recoger los sentidos”, apesar de o caráter bélico da peça ser reminiscente da “guerra de si mesmo” referida na letra, metáfora feita para descrever o amor, denotava-se também, sempre, um certo gosto, alegria – como se esta “guerra de si mesmo” fosse algo que o sujeito lírico tivesse descoberto, e do qual desfrutasse por ser algo de novo, algo que penso demonstrar uma visão positiva do amor, especialmente na última estrofe da letra.

A última obra deste conjunto de “peças palacianas” marcou principalmente pelo impecável lirismo e dramatismo dos vários cantores, que nos proporcionaram um som inegavelmente puro e gracioso, para além de um caráter cristalino e contemplativo.

É então que passamos a uma temática bastante utilizada na arte Barroca – o paralelo entre a infância de Jesus e os tormentos que o esperariam quando crescesse – com “Dexad al niño que llore”. Aqui não pude evitar focar-me na lindíssima parte instrumental, pois, mais uma vez, reparei na lindíssima sonoridade que originava a mistura do alaúde com o cravo (algo que já tinha aprendido – mas com instrumentos um pouco diferentes – com os Jazz Bins no Ovar em Jazz), e, para além disso, aquilo que mais captava a minha atenção nas partes instrumentais, as flautas de bisel.

Foi uma surpresa magnífica o timbre puro, natural, deste instrumento, que, para mim, se revelou mais suave e genuíno do que o de uma flauta transversal – com um pouco de pesquisa, verifiquei que a flauta de bisel entrou em uso na Europa durante a Idade Média, sendo o seu auge precisamente na época do Barroco: nesta altura, surgiu a maior parte do repertório para este instrumento, desde compositores como Telemann a Scarlatti, ou até mesmo obras em que esta era usada nas orquestras, como é o caso dos Concertos de Brandenburgo nºs 2 e 4 de Johann Sebastian Bach.

Seguir-se-ia uma peça de origens muito interessantes – fruto da infeliz escravatura que se viveu no nosso país durante o tempo dos Descobrimentos, esta é, de facto, de origem africana, e demonstra uma versão autêntica de uma “mistura” de crioulo com português.

O clima de felicidade e exaltação da obra (que, aliás, deu origem ao nome “Bando de Surunyo”) é evidente, e é realmente impressionante a maneira como os cantores conseguem (mais uma vez, no âmbito da teatralidade desta peça) transmitir a apenas uma palavra tantas expressões diferentes – neste caso, a interjeição “zuguambe”, que transmite emoções desde a mais cândida doçura até à indignação.

E, finalmente, não podia deixar de falar sobre a última obra que foi interpretada, uma das minhas preferidas – “Antoniya! Flaciquia! Gazipá!”, de Filipe da Madre de Deus, novamente um vilancico de negro.

E esta aqui tem uma história bastante excêntrica: depois de as personagens terem bebido demasiado na noite anterior, uma delas acorda-as, e de imediato recebe as culpas do sucedido, dado que eles queriam ir ao presépio. Brigam um bocadinho, mas tudo isto rapidamente cessa e os copos falam mais alto, tendo várias visões relacionadas com a religião.

Os cantores encenam esta história de forma brilhante, encarando o seu papel de representação com rigor – numa interpretação deveras cómica e bem-humorada, a componente visual foi sobremaneira apelativa e contagiante, concluindo o espetáculo de forma inesquecível e que certamente terá agradado a todos os presentes.

E, assim, chegamos ao fim de uma experiência incrivelmente enriquecedora, que nos permitiu não só conhecer o património de uma época musical extremamente frutífera, como um pouco do nosso próprio (e vastíssimo) património, cujo redescobrimento tem sido louvavelmente levado a cabo por este mesmo grupo na sua vertente de investigação.

Foi uma viagem verdadeiramente maravilhosa, e se pudesse… repetiria num piscar de olhos.

Depois do concerto, tive, ainda, a excelente oportunidade de realizar uma entrevista com o diretor d’O Bando de Surunyo, disoinível no seguinte player:

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Fotos: Direitos Reservados
Áudios: Jaime Valente
Texto: Mariana Rosas

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