Mi-Fá-Dó-Sol | 05 Dez 2024
Carlos Reis e Dino Marques 05/12/2024
Emissão: 05 de Dezembro 2024
Descrição: Programa inteiramente dedicado ao Fado. Realizado por intérpretes do género musical, Mi-Fá-Dó-Sol foca-se na divulgação de artistas e eventos, sem deixar de lado a história e as curiosidades de tão importante património português!
Não restam dúvidas de que o fado constitui uma mistura de elementos culturais e uma síntese de influências diversas”.
Nesta perspetiva apontada por Nuno da Câmara Pereira, podem identificar-se algumas das teses frequentemente convocadas para justificar a origem do fado.
Segundo José Alberto Sardinha, jurista português e pesquisador etnográfico,
(…) este gênero poético-musical [o fado] foi difundido entre o povo pelos jograis e depois, durante séculos e até aos nossos dias, pelos músicos cegos, os “ceguinhos” da terminologia popular, e pelos músicos ambulantes em geral, que cantavam de terra em terra, de feira em feira os mais marcantes sucessos amorosos, dramáticos ou trágicos.
O fado, que não é um fenômeno exclusivamente lisboeta ou coimbrão, teve a sua origem nas canções narrativas, herdeiras da tradição romancística, quando, pelos princípios do séc. XIX, os referidos músicos ambulantes passaram a ser ouvidos e apreciados pelos nobres frequentadores das tabernas e dos prostíbulos e os seus caíram em moda na alta sociedade.
A primeira definição histórica de fado dicionarizada é de 1878, no Dicionário de Moraes, que diz ‘fado – poema do vulgo de carácter narrativo em que se narra uma história real ou imaginária de desenlace triste, ou se descrevem males, a vida penosa de uma certa classe, como no fado do marujo, da freira, etc. Música popular com um ritmo e movimento particular, que se toca ordinariamente na guitarra e que tem por letra os poemas chamados fados’. […] Ou seja, de início, o fado era a história só depois é que se tornou uma música.
José Alberto Sardinha escreveu o ensaio A Origem do fado para explicar como, mediante uma apurada investigação no seio das comunidades rurais de todas as províncias portuguesas, encontrou e descobriu os vestígios de uma tradição ancestral poético-musical idêntica em todo o país, desde as aldeias, às vilas e às cidades, possíveis berços do fado. Por isso, argumenta este autor, a origem do canto narrativo remonta ao século XVI.
O fado é um texto poético, um poema narrativo, antes de ser um estilo musical. Ainda hoje os fadistas afirmam que o fado tem que contar uma história, como os ceguinhos da tradição popular o faziam, deambulando pelas feiras e ruas de todo o país. E esta narratividade atesta a origem nacional do fado.
O estilo musical do fado seria a continuação do romanceiro tradicional, oriundo de todo o território português, herdeiro de uma tradição novelesca disseminada através dos músicos ambulantes que eram ouvidos nas ruas, nas tascas e nas casas de prostituição que no decorrer do tempo foram caindo no gosto da aristocracia portuguesa frequentadora destes ambientes.
No entanto, esta visão da origem do fado como representação do povo português não encontrou apoio entre outros críticos literários, sendo de salientar que surge, então, uma outra explicação para a origem do fado, com início no século XIX, transitando depois para o século XX, segundo a qual a sua base se encontraria na dança africana lundum, modificada para se tornar fado Português, pela voz de autores mais conservadores
A formação do fado como gênero musical constituiu-se principalmente por um extenso (e intenso) processo de trocas interculturais que promoveram uma multiplicidade infinita de interações. A este fato deve-se destacar o período de esta-belecimento do sistema colonial português, que do século XV ao XX se constituiu como império global, presente na Europa, na Ásia, na África e nas Américas.
Os primeiros registos históricos sobre o fado referem-se ao fado dançado no contexto colonial brasileiro, assumindo características associadas à presença negra e mulata.
1830 é frequentemente apontado como o ano em que o fado apareceu, considerando-se que, a partir dessa data, se dá início ao primeiro período da história do fado, porque nessa altura os fadistas começaram a ter impacto na realidade sociológica como intérpretes da música, associada à boémia vivida em bordéis e tabernas. O nascimento do fado como canção está, por isso, associado a locais de marginalidade, nos quais conquistou o papel de um género essencialmente popular e onde, começa depois a dar os primeiros passos no seu desenvolvimento no seio da sociedade.
O Chiú, a Chula, o fado e a Volta-no-Meio são as danças populares mais comuns e mais notáveis do Brasil. (…) A dança favorita dos pretos chama-se fado. Consiste num movimento que faz ondular suavemente e tremer o corpo, e exprime os sentimentos mais voluptuosos da pessoa de uma maneira tão natural como indecente. (…)
Do contexto das múltiplas danças de terreiro de negros e mulatos que abundavam por todo o Brasil ao longo do século XVIII, cruzando matrizes africanas e europeias, emerge o fado, que por sua vez penetra gradualmente nos salões domésticos e nos palcos de teatro das grandes cidades brasileiras já nas primeiras décadas do século XIX, a exemplo do que anteriormente sucedera com outra canção dançada com a mesma raiz.
Em geral, a primeira expressão de música que recebeu o nome da canção do fado nasceu no Brasil, como aproveitamento do nome de uma dança com esse nome, e só depois chegou a Portugal, nos séculos XVIII e XIX. Entre os defensores desta teoria, “é por essa descrição que se pode compreender como em meio às danças dos fados poderia surgir, pela interpolação de cantigas de pensamento poético o tipo de canção depois chamada de fado”.
Levadas para Portugal, como acontecera em meados do século XVIII, como a fofa e o lundum, as danças do fado – acrescidas da contribuição melódico-sentimental das cantigas de “pensamento verdadeiramente poético” (…)
– iam percorrer o caminho próprio entre as camadas baixas de Lisboa, onde os brancos as tomariam dos pretos e mestiços para transformar-lhes a parte cantada em canção urbana a partir da segunda metade do século XIX.
“a canção chamada fado nasceu do intermezzo cantado das danças de fofa e do fandango (…) que acabaria por destacar-se da dança e virar canção”. Esta dança nasceu de uma mistura das danças de fofa e do lundum ou lundu, um tipo de dança afro-brasileira, e da dança do fandango, esta última de origem provavelmente espanhola. Deste modo, trata-se de uma “mistura das danças tradicionais espanholas com as danças das suas colónias americanas. Nesta dança aparecem elementos coreográficos de várias culturas, tais como negro-africanas, orientais, ciganas e tradicionais europeus, o que se deve, mais provavelmente, à convivência de várias culturas distintas neste país”.
O lundum terá nascido, como atestam algumas fontes documentais, da dança do platô, uma dança dos escravos executada nas cerimónias religiosas africanas no Brasil. Desde o século XVI, a mistura e a participação dos europeus brasileiros nas cerimónias negras levaram à interrupção destas danças. Só mais tarde se espalharam por todo o Brasil e, no século XVIII, esta dança recebe o nome de lundum. Quanto aos instrumentos de percussão que acompanham o lundum e fandango, refiram-se as palmeiras e, mais tarde, o som da viola, introduzido por influência europeia.
De dança do Brasil à música de Portugal, o fado atravessou o Atlântico para constituir-se em um género que deixou para trás o movimento sincopado de uma dança sensual praticada em algumas casas de entretenimento da cidade do Rio de Janeiro no século XVIII. O argumento que sustenta a origem afro-brasileira do fado está ligado ao período em que o Brasil era colônia de Portugal, quando ocorreu a mistura cultural entre europeus, americanos e africanos que resultou no aparecimento de novos movimentos culturais, artísticos e religiosos em terras brasileiras.
Estas danças foram, num primeiro momento, adotadas pela classe popular, no centro das cidades brasileiras, mas logo se disseminaram entre outras classes até chegarem à nobreza. Por outro lado, há que ter em conta que estas danças eram consideradas de natureza lasciva, mas, ainda assim, começam a ser praticadas pela nobreza brasileira.
Com efeito, “pelo que indicam as descrições de contemporâneos, a nova dança constituiria, no geral, uma fusão das anteriores danças do fandango, da fofa e do lundum – cuja umbigada ostensiva mantinha, mas acrescentando pormenores indicadores da maior participação da gente branca”.
Esta dança constitui, pois, uma combinação das danças do fandango, do lundum e da fofa, sendo mais provável que tivesse surgido no Rio de Janeiro, em finais do século XVIII. Simultaneamente, esta dança “ampliava o papel do canto, trocando os estribilhos marcados por palmas pelo intermezzo cantado às vezes de pensamento verdadeiramente poético, acompanhado à viola”.
“a forma de canto solo, que a partir de meados do século XIX receberia o nome de fado, representou uma criação espontânea das camadas mais baixas de Lisboa.”. Estes cantares começaram a ser cultivados “nas tabernas e bordéis, ou seja, nos lugares de encontro das camadas populares que, na Lisboa da época, eram constituídas por uma massa enorme e heterogénea de pessoas”. As suas vidas instáveis e a sua insatisfação com as condições sociais estão bem refletidas na primeira música do fado.
É num universo de pobreza, de jogo e contrabando, de prostituição e de boémia, num circuito marginal cada vez mais significativo das primeiras décadas do século XIX que o fado dá os primeiros passos: são as tabernas, os bordéis, lugares de encontro essencialmente masculino, em que a presença feminina se restringe quase em exclusivo ao universo da prostituição.
Seja qual for a sua origem, o fado sofreu mudanças em vários momentos, não aparecendo espontaneamente sob a forma que conhecemos hoje, e foi mostrado pela primeira vez em Lisboa em meados deste século. Presumivelmente, este tipo de dança do fado foi mais tarde trazido para Portugal, como outros tipos de dança, e é possível reconhecer na dança a influência dos afro-brasileiros, que dançam mesmo entre os mais abastados. Ao mesmo tempo, depois de a família real ter deixado o Brasil, verificaram-se profundas mudanças sociais em Portugal. Muitas famílias burguesas obtiveram bens em Lisboa e um grande número de populações rurais ingressou, resultando num grande aumento populacional e numa expansão das áreas urbanas. A composição da população tornou-se bastante diversificada.
O fado apareceu em Lisboa desta forma, mostrando características diferentes no ambiente rural, porque se realiza ao ar livre, jardins, retiros, exposições ou touros. Por isso, afirma-se num ambiente muito diferente e mantém-se, bastante ligado a circuitos boémios e marginais, acontecendo em momentos de lazer e convívio entre marujos, marialvas ou prostitutas.
Muitos dos espaços onde o fado era cantado foram mais tarde frequentados por uma camada social bastante diversificada, como “estudantes, jornalistas, homens do teatro e artistas”.
O fado nasceu no Brasil, sendo a dança o resultado de um processo multicultural, misturando elementos da África, da Europa e do Brasil. Lisboa não é o local de origem desta dança, tendo-a recebido e modificado até ela se converter numa música, absorvida no universo de Lisboa. Toda esta herança multicultural criou uma nova síntese cultural no século XIX. A dança denominada fado de Lisboa é semelhante à dança brasileira, acreditando igualmente que várias das apresentações de dança do fado são imitações brasileiras.
Em relação ao fado cantado, o mesmo remonta a sua origem ao fado dançado em terras brasileiras, onde surgem os primeiros indícios desta prática. Isto permite corroborar a teoria da origem brasileira do fado. A presença de géneros musicais afro-brasileiros em Portugal encontra-se amplamente documentada, como acontece com a fofa e o lundum, demonstrando como se entrecruzaram práticas culturais africanas, brasileiras e portuguesas.
A teoria brasileira defendida para a origem do fado, como dança derivada do lundum e levada para Portugal com o regresso da família real e dos seus súbditos, demonstra também como depois a canção se incorporou nos bairros menos abastados de Lisboa, ganhando novas referências e transformando-se num ícone musical dos lisboetas.
Segundo argumentam os partidários da tese árabe, após a restauração do cristianismo, o fado destacou-se entre as populações muçulmanas fixadas na zona próxima da Mouraria. A explicação mais habitual para a génese do fado centra-se nos cânticos dos mouros, mais concretamente no que concerne ao fado de Lisboa, já que este povo permaneceu nos arredores da capital, mesmo depois de terminada a reconquista cristã. Verifica-se, por exemplo, uma certa correspondência entre os cânticos tristes e melancólicos dos mouros e o fado lisboeta, para além da conexão espacial com a Mouraria, local afamado por nele ocorrerem as práticas fadistas de Lisboa.
No entanto, esta hipótese é de difícil sustentação, uma vez que, se a origem do fado radicasse na cultura árabe, então a presença geográfica deste tipo de interpretação musical deveria ser ainda mais evidente noutras paragens, como o Algarve, o “último reduto dos Árabes em Portugal”. Por outro lado, há que sublinhar que os muçulmanos abandonaram a Península Ibérica nos finais do século XV e os primeiros registos de fado surgiram apenas no início do século XIX.
A origem marítima do fado é defendida, tendo em consideração que os marinheiros o cantavam na proa dos barcos. É, possivelmente, por essa razão que o mar é uma das temáticas centrais deste género musical. Quando falamos de Portugal, é necessário mencionar o papel fulcral desempenhado pelo contexto marítimo. O império colonial português começou a estabelecer-se no início do século XV. A partir de então, o cenário marítimo originou numerosas metáforas e é frequentemente representado como uma espécie de infinito imenso, permitindo interrogar o poder do desconhecido e da natureza.
O fado tem uma origem marítima, origem que se lhe vislumbra no seu ritmo onduloso como os movimentos cadenciados da vaga, balanceante como o jogar de bombordo a estibordo nos navios sobre a toalha líquida florida de fosforescências fugitivas como o vaivém das ondas batendo no costado, ofegante como o arfar do Grande Azul desfazendo a sua túnica franjada de rendas espumosas, triste como as lamentações fluctívagas do Atlântico que se convulsa glauco com babas de prata como a indefinível nostalgia da pátria ausente.
Desta forma, o oceano constitui um filão imagístico muito importante no que diz respeito à essência do fado. Tudo o que se encontra com ele se relacionado (veleiros, tempestades, ondas, sereias, etc.), converteu-se num código poético de expressão do contato sentimental dos portugueses com o mar. A explicação portuguesa da origem do fado parece razoável, porque algumas letras de fados provam que existe uma forte ligação com o signo do mar, havendo, por exemplo, algumas canções do fado que explicitamente tematizam esta teoria oceânica.
Playlist:
00:00:19 António Terra – Sol da Ribeira
00:04:34 Mercês da Cunha Rego – Os Teus Olhos
00:08:42 Berta Cardoso – Olhai a noite
00:11:52 Carlos Zel – Poema Do Nosso Amor
00:15:24 João Ferreira Rosa – Pedi a Deus
00:18:31 Tony de Matos – Procuro e não te encontro
00:21:51 Jorge Fontes – Canoas do Tejo
00:24:54 Manuel De Almeida – Maria Triste
00:28:06 Jorge César – Se ao menos houvesse um dia
00:32:39 Beatriz da Conceição – Longe demais
00:37:00 Isabel de Oliveira – Fado Pechincha
00:39:52 Manuel Delindro – Mar encaplado
00:43:21 Fernando Maurício – A minha oração
00:47:27 António Severino – Senhor Natal
00:50:13 Maria do Céu Correia – Silêncio
00:51:48 Fernanda Moreira – Horas Em Cama Fria
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Publicação: Irina Silva
Foto(s): Direitos reservados