Mi-Fá-Dó-Sol | 14 Nov 2024
Carlos Reis e Dino Marques 14/11/2024
Emissão: 14 de Novembro 2024
Descrição: Programa inteiramente dedicado ao Fado. Realizado por intérpretes do género musical, Mi-Fá-Dó-Sol foca-se na divulgação de artistas e eventos, sem deixar de lado a história e as curiosidades de tão importante património português!
Destaque: FADO PORTUGUÊS
O Fado nasceu um dia, quando o vento mal bulia e o céu o mar prolongava, na amurada dum veleiro, no peito dum marinheiro que, estando triste, cantava, que, estando triste, cantava.
Ai, que lindeza tamanha, meu chão, meu monte, meu vale, de folhas, flores, frutas de oiro, vê se vês terras de Espanha, areias de Portugal, olhar ceguinho de choro.
Na boca dum marinheiro do frágil barco veleiro, morrendo a canção magoada, diz o pungir dos desejos do lábio a queimar de beijos que beija o ar, e mais nada, que beija o ar, e mais nada.
Mãe, adeus. Adeus, Maria. Guarda bem no teu sentido que aqui te faço uma jura: que ou te levo à sacristia, ou foi Deus que foi servido dar-me no mar sepultura.
Ora eis que embora outro dia, quando o vento nem bulia e o céu o mar prolongava, à proa de outro veleiro velava outro marinheiro que, estando triste, cantava, que, estando triste, cantava.
O título do poema constitui, já de si, um verdadeiro programa poético. Na realidade, ao intitulá-lo fado português, Régio celebra o valor coletivo do sentimento lusíada vertido na canção nacional. O fado é, portanto, apresentado como um destino coletivo, de alcance nacional, funcionando como marca identitária de um povo. Trata-se, pois, de um poema com evidente alcance autorreflexivo, uma vez que o fado constitui o seu próprio tema. Logo no início, relata-se a génese do fado, situando a sua origem no canto melancólico de um marinheiro.
Todo o poema de Régio irá desenvolver uma ambientação marítima que evoca, por um lado, o romanceiro (lembrando, por exemplo, o romance popular da Nau Catrineta) ou, por outro, os relatos de viagens quinhentistas ou a epopeia de Camões. De facto, o cenário da despedida que precede a partida para o mar (“Mãe, adeus. Adeus, Maria”) parece inspirado por essa tradição literária que se tornou inseparável de uma certa ideia de portugalidade.
Para além da recorrência deste imaginário marítimo, o poema de Régio acentua o tom disfórico que constitui a marca distintiva do fado. Versos como “no peito dum marinheiro/que, estando triste, cantava”, “olhar ceguinho de choro”; “morrendo a canção magoada, /diz o pungir dos desejos”, entre outros, não deixam dúvidas quanto à temática obsessiva do fado: o amor dilacerante, a nostalgia de um tempo ou de um espaço perdidos e o predomínio absoluto da dolência e da melancolia, indiciando, por vezes, um verdadeiro prazer masoquista.
Salienta-se também a presença de elementos temáticos e lexicais que remetem para a tradição popular: o uso da interjeição (“Ai, que lindeza tamanha”), o recurso ao diminutivo (“olhar ceguinho de choro”), às repetições (“Mãe, adeus. Adeus, Maria”) ou a fórmulas inspiradas no romanceiro tradicional (“terras de Espanha, / areias de Portugal”; “dar-me no mar sepultura”). Integrados num poema culto, estes elementos pretendem reatar a relação antiga do fado com uma poesia de fundo popular.
Pedro de Mello nasceu em 1904 no Porto e faleceu, em 1984, na mesma cidade. Destacou-se como jornalista e estudioso atento às tradições populares e ao folclore português. Foi um poeta muito prolífico, tendo publicado mais de trinta livros a partir da década de 30 do século XX. A ligação entre a poesia de Pedro Homem de Mello e o fado foi das mais produtivas da literatura portuguesa. Amália Rodrigues imortalizou, por exemplo, alguns dos seus poemas, como os célebres “Povo que lavas no rio”, “O rapaz da camisola verde”, “Havemos de ir a Viana” e “Fria Claridade”, que hoje constituem verdadeiros clássicos do género.
Foi Alan Oulman quem vislumbrou nas palavras de Pedro Homem de Mello as melodias que, mais tarde, ganharam universalidade na voz única de Amália Rodrigues. Melodias de uma pureza quase visceral, que entraram no universo coletivo dos portugueses, tendo sido desde então recriadas, revistadas e mesmo reinventadas por todas as posteriores gerações de artistas. Sentimentos, convicções e desejos que afloram a cada verso, a cada rima, numa toada de beleza e emotividade profundas e inconfundíveis.
Assim, para além de vários de entre os seus poemas terem sido interpretados por fadistas portugueses, alguns foram expressamente compostos para fado.
Vejamos, a título exemplificativo, o poema “Prece” imortalizado na voz de Amália:
“Prece” é um poema que alia a intensidade emotiva à musicalidade, sobretudo resultante da estrutura estrófica e da repetição sintática. Nele, uma retórica rigorosa resulta numa tensão emocional produtiva.
Revelando profundidade metafísica, sobretudo em virtude da presença obsessiva do tema da morte do sujeito lírico, o poema assenta numa estrutura reiterativa simples, em que cada estrofe apresenta um cenário hipotético de morte. Depois de conjeturar que irá morrer na “praia”, na “rua”, “entre grades”, “dum tiro” ou “no leito”, o sujeito refere, no verso culminante do poema, que a única coisa que realmente lhe interessa é morrer na terra natal.
O poema articula dois dos temas maiores do fado: por um lado, a morte, atestando a predileção do género musical nacional pelo registo mórbido ou mesmo fúnebre; por outro, o apego ao torrão natal, que, neste poema, adquire contornos de patriotismo fervoroso e de apologia nacionalista. No fundo, é como se o amor à pátria abrandasse o caráter trágico da morte, fazendo com que o sujeito poético se resignasse à fatalidade do seu desaparecimento.
O poema encontra-se construído de acordo com um modelo repetitivo e uma sintaxe anafórica que gera um crescendo emotivo que encontra o seu ponto culminante no último verso. Significativamente, a palavra que encerra o poema (e aquela que mais facilmente se inscreve na memória do leitor/ouvinte) é Portugal, que funciona como uma súmula do conteúdo patriótico desenvolvido ao longo do texto.
David Mourão-Ferreira (1927-1996), um dos autores mais representativos da literatura portuguesa contemporânea, foi um escritor multifacetado: poeta, romancista e dramaturgo, exerceu ainda as atividades de ensaísta, tradutor e crítico literário.
Na década de 50, David Mourão-Ferreira conhece, por intermédio do seu amigo e cunhado Rui Valentim de Carvalho, Amália Rodrigues. Este encontro foi determinante para a sua trajetória poética e para a relação estreita que estabeleceu com o universo do fado. É, pois, em virtude dessa relação de amizade que o autor escreve as primeiras letras de fados para a interpretação de Amália: “Primavera” (1953), “Libertação” (1955) e as versões portuguesas “Sempre e Sempre Amor” (1953), “Neblina” (1954) e “Quando a Noite Vem” (1954).
Do feliz encontro, que mais tarde se tornaria um encontro a três (no qual se incluía também Alain Oulman) surgiu uma série de poemas para Amália interpretar como só ela sabia, e ainda aquele que ainda hoje é considerado um dos melhores discos de Fado de todos os tempos: Busto (1962).
Nos seus versos, plenos de emotividade e intimismo, David Mourão-Ferreira recriava, descrevendo como ainda ninguém tinha feito até então, os temas fulcrais do Fado: o Amor, a Saudade, a cidade de Lisboa. A sensibilidade de Amália Rodrigues deixou-se imediatamente tocar pelas palavras do Poeta, e assim assistimos ao estabelecimento da mais vasta produção poética de um autor para a Diva do Fado (David Mourão-Ferreira foi o mais cantado por Amália, a seguir a ela própria).
E foi exatamente através dos fados que escreveu, que David Mourão-Ferreira conquistou o reconhecimento não só dos círculos literários lisboetas, mas sobretudo do povo português (e também de todos os estrangeiros que tomaram contacto com a obra de Amália).
(…) David Mourão-Ferreira chegou a todos os portugueses através da Maria Lisboa, da Madrugada de Alfama, da Primavera, do Abandono, do Barco Negro, …, conquistando assim a Imortalidade reservada aos que sabem inculcar, na alma de cada português e no património de todos, a sensação visceral de nos sentirmos nós próprios, neste Lugar e neste Tempo.
David Mourão-Ferreira escolhe um enquadramento espacial que corresponde à paisagem típica do fado lisboeta. As referências aos bairros populares de Alfama e da Madragoa, reenviando para os lugares de origem do fado, evocam os ambientes onde ele é cultivado e cantado. Trata-se, portanto, de tornar presente um cenário pitoresco, ligado ao quotidiano e a sociabilidade dos bairros de Lisboa.
Playlist:
00:00:19 Amália Rodrigues – Fado Portugues
00:06:18 Mónica de Jesus – Não sei
00:09:19 Tony Reis – Pedro Rodrigues
00:12:31 Ricardo Ribeiro – Desdobro a madrugada
00:16:45 Justino Nascimento – O Meu Menino
00:19:58 Amália Rodrigues – Povo que lavas no rio
00:25:29 Amália Rodrigues – Fria Claridade
00:28:17 João Braga – Prece
00:32:54 António Severino – Não julgue pecados meus
00:37:28 Valdemar Vigário – O Meu Desejo
00:41:14 Manuel De Almeida – Praga
00:44:40 Amália Rodrigues – O Rapaz Da Camisola Verde
00:48:29 Carlos Macedo – Esquina de rua
00:49:36 Amália Rodrigues – Havemos de Ir a Viana
00:53:19 Carlos Zel – Fado Da Internet
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Publicação: Irina Silva
Foto(s): Direitos reservados