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Em Santa Maria de Lamas há um Festival que suspende o sound check para se rezar a missa! Chama-se Basqueiral…

Escrito por em 05/07/2022

No nosso cantinho à beira mar plantado há dois tipos de organizações de festivais. De um lado há o fito do lucro, os nomes grandes, o mainstream. Nada contra, muito pelo contrário. Do outro há pequenos promotores que estão só preocupados em fazer a diferença… e pagar as contas no final. Desdobram-se em pedidos de apoio, juntam grupos de pessoas de boa vontade, fazem muito com as suas próprias mãos e, não poucas vezes, concretizam bons projetos. São sonhadores, empenhados, resilientes e trabalhadores. O Basqueiral é um desses casos. E arrisca-se a crescer!

Estou certo que o grupo de amigos que formou a Basqueiro – Associação Cultural não me vai levar a mal se os caracterizar como idiotas. Idiotas no sentido de que produziram uma ideia, um conceito, um sonho. Foram eles que deram o pontapé de saída do festival. De forma “tímida” concretizaram-no numa primeira edição que hoje se pode considerar atípica. Decorreu num outro espaço, apenas focada na música alternativa e com condições de iniciante, mas a vida é feita de arranques e se há coisa que essa malta estava disposta era a aprender…

Numa pequena vila onde os usos e costumes não são propriamente os concertos de música alternativa, poderia até não ter acontecido uma segunda edição. Ou porque a Associação que tinha organizado a primeira não o fazia, ou porque a comunidade poderia não ter recebido bem o “ano zero”, ou porque os apoios não se repetiam, ou porque as ajudas não aumentavam e impediam-nos de fazer melhor. Muitos outros porquês se poderiam ainda enumerar, mas felizmente nenhum deles se impôs. Antes pelo contrário, e ainda bem!

Logo no ano seguinte, o Basqueiral encontrou, na minha opinião, o seu local. Mudou-se de armas e bagagens para o centro da vila, indo ao encontro dos Jardins do Parque de Santa Maria de Lamas. Paredes meias com a história daquelas gentes, instalou-se orgulhosamente entre a Igreja e o Museu de Lamas. Introduziu a vertente multicultural, com uma extensão a que chamou Basqueirart. Começou a interagir (ainda mais) com as forças vivas de Santa Maria de Lamas. Institucionais, empresariais e menos formais, gradualmente e ano após ano foram envolvendo, convencendo, angariando e seduzindo mais parceiros, com quem articulam um conjunto gigante de coisas que há para fazer. Muitas aparentemente desnecessárias, mas que se deixassem de acontecer seriam notadas. Falo, por exemplo, de dezenas (serão centenas…) de velas penduradas nas árvores do Parque, que são acesas todas as noites…

E foi assim que um Festival com um nome estranho, para não dizer duvidoso, se foi afirmando ao longo dos tempos. A cada ano foram subindo a fasquia, melhorando as condições técnicas, o acolhimento, a decoração, convidando nomes mais conhecidos sem nunca deixar de dar oportunidades aos locais. De braço dado com o Museu, que passou a fazer parte da própria organização, cresceram, sempre com os pés bem assentes na terra. Sempre com o espírito alternativo. Sempre à sua maneira. Sempre integrados na comunidade. Diria mesmo respeitados, por mérito próprio!

E eis que, vinda do nada, se abateu sobre nós uma pandemia. Se houve setor que sofreu com isso foi o das artes. Se houve gente que tinha tudo para mandar a toalha ao chão foram os organizadores de eventos. Os artistas, os técnicos, enfim, toda uma panóplia de profissões que são necessárias para colocar de pé um festival, um evento, uma festa que seja; foram impedidos por largos meses de trabalhar. A determinada altura até de forma um pouco discriminatória, digo eu… E é no meio de tudo isso que o Basqueiral se reinventa. Quanto todos adiaram, o Basqueirart agigantou-se e foi uma pedrada no charco. A música continuou por lá, servida em doses lentas e com muitas cadeiras à mistura. Outras causas surgiram e o Festival tornou-se interventivo na sociedade. Já não só na comunidade local, mas ainda lá. Transfigurar um Museu inteiro para apresentar uma exposição só é possível quando se quer muito. E mesmo querendo muito só acontece quando se trabalha sem parar. Mais de uma tonelada de lixo foi usada nas instalações artísticas que quiseram dar (e deram) uma bofetada a tantos visitantes… O Basqueiral voou e tornou-se (mais) visível fora de portas!

Aqueles que tiveram a paciência ou a ousadia (ou ambas) de ler até este ponto devem estar a pensar onde pretendo chegar com este texto tão intimista. Esclareço já que apenas quero chegar à edição de 2022 do Basqueiral, onde mais uma vez tive o prazer de estar a trabalhar. E de presenciar um Festival mais maduro. E de ser recebido como um amigo. E de perceber que o meu trabalho é valorizado.

Talvez esperem agora um relato do alinhamento dos espetáculos, um texto mais objetivo e até eventualmente crítico das várias atuações. Desenganem-se, porque vou prosseguir neste registo que, para ser possível teve que ser escrito com distanciamento temporal.

Em 2022 o Basqueiral surgiu com toda a pujança que se poderia esperar de um regresso pós pandémico. Mantendo a função interventiva do Basqueirart usou de forma inteligente e perfeitamente visível um para vender o outro e o outro para vender o um. Apresentou-se como “uma experiência”, mais do que uma sequência de concertos. No Basqueiral, apesar de um alinhamento para cumprir (capítulo onde foi exemplar) ainda há tempo. Para reencontrar amigos. Para fazer novos amigos. Para conversar, para beber um copo sem ter que estar numa fila interminável. Por lá comeu-se bem. O som esteve impecável e o Museu voltou a reinventar-se, desta vez com uma praia (sim, com areia) a simular a chegada à costa dos refugiados da “Rota do Mediterrâneo“, em mais uma mega exposição com conteúdo chocante mas necessário.

A integração na comunidade manteve-se e reforçou-se ainda mais. O Basqueiral tornou-se um Festival de detalhes, de pormenores que tornam cada vez mais visível uma vontade férrea de fazer bem, receber melhor e elevar o nome de Santa Maria de Lamas. O detalhe que dá título a este escrito, por exemplo, mostra bem o respeito mútuo que por lá reina: quando chega a hora de rezar a missa, o sound check é suspendido, retomando no final do culto religioso, celebrado na Igreja que também já acolheu concertos…

No café mais acima, no Parque, repleto de mobiliário de pedra, tentam-me vender um chapéu de cortiça. Quando respondo que já comprei no ano passado, de imediato assumem que estou no Basqueiral e fazem questão de dizer que a organização “é boa malta“, ainda que prefiram manter-se por um outro ambiente, quase paredes meias, no qual à noite reina o karaoke! Mais tarde sabemos que o guarda sol que me disponibilizaram para trabalhar foi emprestado por esse estabelecimento…

O Festival é também organizado com uma certa bondade. Os preços dos bilhetes são simpáticos e lá dentro não nos sentimos explorados quando vamos ao bar ou às barraquinhas de comida. Por falar em comida, mais um exemplo de integração foi a abertura da cantina do Colégio de Lamas para servir Staff, Imprensa e Artistas: não tenho memória de me darem à escolha entre cinco pratos diferentes, todos eles com ótimo aspeto, independentemente da opção pelos rojões ser um destino previamente traçado…

O corre corre entre o recinto do Festival e o interior do Museu de Lamas foi uma constante, com o Basqueirart a conseguir seduzir os amantes da música e da arte em geral. Mais importante do que as visitas, ouvi por várias vezes grupos a falar sobre o flagelo que a exposição retrata, ainda sem final à vista; e do esforço que terá sido conseguir atrair para ali as fotografias e montar as várias instalações…

Com a zona do Backstage reformulada, 2022 chegou mais organizado e, sobretudo, mas tranquilo para os artistas que, não poucas vezes chegam a precisar de repouso, seja por uma viagem longa, pelo acumular de espetáculos dos últimos dias ou pela necessidade de se concentrarem para a atuação que está a chegar…

Santa Maria de Lamas não tem parque de campismo, mas a organização garantiu aos festivaleiros a possibilidade de acampar gratuitamente bem perto do recinto do Basqueiral. Mais um esforço que se revelou uma aposta ganha, até porque por lá se falavam outras línguas que não o português, sinónimo de que o Festival começa a arrastar pessoas além fronteiras…

Tinha, obviamente, que chegar ao basqueiro, que é como quem diz à música. As escolhas, como em todo o lado, poderiam sempre ser outras. Foram aquelas e pareceram-me bem. Um alinhamento equilibrado, suficientemente eclético, que se não foi pensado para agradar a gregos e a troianos acabou por conseguir cumprir essa função. A opção pelos dois palcos, a permitir uma vez mais que quem queira pode assistir a todos os concertos: quando um termina no palco maior começa outro no mais pequeno e assim sucessivamente. Disse maior e não principal, porque no Basqueiral, apesar de haver sempre quem procure um cabeça de cartaz, esse conceito não existe! A aposta em artistas vindos do estrangeiro, praticamente desconhecidos por terras lusas, havendo mesmo lugar a estreias por cá, revelou capacidade de atrair novos projetos e ausência de medo do desconhecido. Uma organização que sabe correr riscos, embora controlados, tem tudo para crescer e ser bem sucedida. Em último caso, aprenderá com os erros cometidos, o que também se aplica ao Basqueiral!

A compensação de todo o trabalho realizado chegou logo no primeiro dia: acompanho o Basqueiral há anos e nunca tinha visto lá pelo Parque tanta gente junta. “Merecido“, pensei com os meu botões. Sei que a multidão não é o objetivo maior da organização, mas vi por lá vários sorrisos de responsáveis, aos quais não era alheia a lotação do recinto. O que me leva a pensar noutra coisa: e se no próximo ano o Festival volta a ter um impulso tão grande? Será bom para ele? Estou certo que haverá por lá quem pense nisso e pese nos pratos da balança se mais é sempre melhor. Este pode parecer um pensamento egoísta, mas não vão por aí. Manter a identidade de um evento como o Basqueiral não é fácil se lá quisermos “enfiar” muito mais gente…

No final do primeiro dia, balanço positivo. Opto por destacar dois concertos, curiosamente por razões completamente opostas… Bizarra Locomotiva, porque cumpriu com o que eu estava à espera, ou seja, não me surpreendeu negativamente. Máquina bem oleada, energia suficiente, entrega habitual, concerto competente, presença incontornável. Do outro lado, até porque literalmente esteve no outro palco, Nuha Ruby Ra surpreendeu-me positivamente, e de que maneira! Verdadeiro furacão em palco, a magia que consegue retirar da sua voz sintetizada através de dois microfones em simultâneo é algo que já sabia que iria acontecer. Mas uma coisa é prever, outra é assistir: sublime, a mostrar que se pode fazer muito com tão pouco; mestre na arte de seduzir o público, diria que já valeria a pena ter ido nesse dia ao Basqueiral só para o concerto da londrina, mesmo que não gostasse de nenhum dos outros. E não foi esse o caso…

No final do segundo dia, balanço difícil de fazer, ou melhor difícil de exprimir por palavras, mas vamos por partes! Em primeiro lugar há que agradecer ao S. Pedro não ter estragado a festa. Ao longo do dia foram muitos os olhares focados nas previsões meteorológicas e sabia-se que ia chover… A dúvida era quando e quanto… Felizmente para todos, a chuva fez duas aparições ao estilo aguaceiro, uma um pouco mais fugaz do que a outra e depois chegou à conclusão que tinha por obrigação deixar a malta do Basqueiral acabar o Festival em grande! E foi isso mesmo que aconteceu… A escolha dos franceses The Psychotic Monks para o fecho não poderia ter sido mais acertada! Não me canso de o dizer: há muito que não era surpreendido de forma tão arrebatadora por um concerto… Um alinhamento sem pausas, onde o público chegava a duvidar se podia bater palmas ou não, de tão belas e melodiosas que eram as paragens dum rock maioritariamente explosivo, eletrónico e pleno de sentimentos. Por momentos, a banda tocou as músicas que todos tínhamos guardadas nas nossas almas… Competentes, afinados que nem um relógio suíço, elevaram a um patamar muito alto a responsabilidade do Basqueiral para o próximo ano!

Antes do próximo ano há que relembrar que o Basqueiral ainda não acabou. A magnífica exposição “A Rota do Mediterrâneo” está patente no Museu de Lamas até 4 de setembro. Por esta altura, o Basqueirart também já agendou as projeções de cinema, em parceria com o CineEco Seia, que mais uma vez estende a sua programação até à sala da capela do Museu de Lamas em quatro datas, sendo a primeira já no próximo domingo, 10 de julho, a partir das 15h30.

Termino com um grande abraço a todos que tornam possível a realização do Festival, fazendo votos de que em 2023 nos voltemos a encontrar, em mais uma celebração da arte e da música alternativa em particular. Longa vida ao Basqueiral!

Deixo uma galeria fotográfica, com alguns dos melhores instantâneos do Festival:

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Grande parte dos concertos desta e de outras edições do Basqueiral podem ser revistos aqui:

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Fotos: António Dias
Vídeos: Rádio AVfm
Texto: Jaime Valente

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