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Ovar em Jazz’24: pura, imersiva e bela não chegam para caracterizar a música de Abe Rábade

Escrito por em 29/04/2024

Quando o concerto começou, a primeira coisa de que me lembrei foi de Abe Rábade (numa das melhores entrevistas que já tive, disponível no fim do artigo) me ter dito que o jazz era a música das músicas, no sentido de ser tão vasto e maleável. Foi precisamente isso que salta logo à vista na sua música, o quão singular e variada é, para além de ser extraordinariamente pulcra, imersiva e bela. Definitivamente, bela.

Foi assim que decorreu o concerto de Abe Rábade no festival Ovar em Jazz, no passado dia 19 de Abril. Tão puramente belo, um ambiente tão maravilhoso, cada momento passa de forma demasiado efémera ao ouvido, tal é a magnitude da cristalina ternura que a sua música acarreta. Apenas pela peça inicial, já podíamos encontrar resposta à eterna pergunta: como é que soaria um sonho?

Acho que é importante ressalvar que esta música é o exemplo perfeito de como música não precisa de ser extremamente rebuscada, ou fazer uso de técnicas recônditas, para ser inovadora. A música de Abe Rábade faz uma abordagem incrivelmente fresca ao jazz que sai da sua caneta, extremamente cativante e vivaz, particularmente pela variedade incrível de elementos que incorpora na sua música, de uma forma tão pessoal e cheia de pulcra.

É tão louvável ver este ambiente no palco, com tanta vontade de fazer música, com uma ligação tão genuína entre todos naquilo que tocam, uma presença tão forte e envolvente.

Desta forma, pura e simplesmente não tenho palavras para descrever o quão gaiato e jovial era o cenário em palco (o que até fica mal dito por uma repórter, mas pronto). Com o relevantíssimo toque da presença de um dançarino em palco, o ambiente era quase reminiscente de uma alegre romaria popular de tempos idos. O que, para mim, foi fantástica a maneira como a música era envolvente e extraordinariamente convidativa, mas de um intimismo indescritivelmente especial, e capaz de emoções intensas e pungentes.

No aspeto programático, este era um dos aspetos sobre o qual eu estava mais apreensiva (leia-se: curiosa), e como me surpreendeu – não só a música conseguia ser incrivelmente cinemática, como a maneira de personificar cada planta é, nada mais nada menos do que, genial.

Na verdade, não consigo acentuar o suficiente o quão sinceras e transcendentes são as representações de cada espécie. A junção de vários estilos diferentes era impressionantemente natural, e o uso da etnomusicologia galega era bastante proeminente, para além de talentosamente articulado. Este concerto foi, de facto, daqueles em que se torna impossível pousar a caneta, de quanto merecia elogio.

Outro aspeto relevante foram as letras usadas – o timbre da voz casava perfeitamente com o ambiente das peças, tão reminiscente de um termo interessante usado pelo artista na entrevista, o ethos (que remonta já á Antiga Grécia), mas a letra em particular deixou-me muito curiosa em relação à sua autoria (spoiler alert: eu decidi fazer o trabalhinho de casa e uma parte significante são letras populares, mas há também letras do próprio Abe e de outros autores). De qualquer maneira, o conteúdo estava muito bem escolhido e musicado. A percussão utilizada pelo cantor era também incrivelmente apropriada e trazia um caráter um pouco mais denso, mas sobretudo mais potente e agudo às canções.

As partes notavelmente mais jazzísticas tornam-se em retratos incrivelmente feéricos, como se nos mostrassem uma espécie de um tesouro, uma preciosidade, e depois uma homenagem e louvor tão enérgicos sobre a mesma que nos deixam completamente rendidos a cada uma delas.

Mas, no meio de tudo isto, tantas influências e tão variadas, onde se encontra, efetivamente, Abe Rábade como compositor? Isso foi aquilo que me surpreendeu imenso, o facto de uma linguagem tão marcadamente jazzística, ou então tão marcadamente galega, haver espaço para se notar a musicalidade do próprio Rábade, tão clara, e como que um ponto de encontro, um ponto de encontro único e interminavelmente rico para tudo aquilo em que se inspira. É fantástico como o artista adiciona um marcante e maravilhoso toque pessoal a tudo aquilo que interpreta, e há que dizer: é mesmo um toquezinho digno de Rei Midas.

Em suma, um fervor inabalável, uma vivacidade única e um ambiente inesquecível, com música indubitavelmente singular e de uma expressividade encantadora. E acho especiais, concertos como este, tão penetrantes e incrivelmente intensos, músicos que nos entra pela alma adentro, em que nem dá tempo de pensar na harmonia curiosa, no ritmo intrincado, nisto e naquilo que está tão bem conseguido, começar a dissecar tudo como se estivesse numa aula de análise. Em momentos como este, é impossível não se render por completo e deixar-se penetrar por música tão unificadora, viva e visivelmente escrita com tanto, mas tanto carinho.

Para quem não teve oportunidade de ouvir, não podia recomendar mais que o fizesse, e espero sinceramente que música de tal ordem magnífica possa chegar muito, muito longe, pois vale mesmo a pena – é como se Abe estivesse a escrever poemas para um velho amigo, sobre a sua casa no meio das montanhas.

Resta-me agradecer pelo serão acolhedor e maravilhoso que nos foi possível experienciar, e aconselhar, vivamente, do fundo do meu coração, a que ouçam a entrevista porque adiciona uma nova e completa camada de significado ao concerto em si, refletindo em aspetos verdadeiramente fascinantes (…tive uma sorte desgraçada).

Que venham mais concertos como este, tão especiais. E acima de tudo, de uma música tão pura, bela e com uma bondade que eu nunca tinha visto.

Deixo a entrevista realizada a Abe Rábade, no âmbito do concerto no Ovar em Jazz:

Confira alguns momentos do concerto, pela lente de António Dias:

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Fotos: António Dias
Áudios: Jaime Valente
Texto: Mariana Rosas

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